Formação dos advogados – por A. Marinho Pinto

Transcrito, com a devida vénia, do Jornal de Notícias de 2012-02-27

 

 

O Tribunal Constitucional (TC) veio, mais uma vez, declarar inconstitucionais várias normas do Regulamento Nacional de Estágio (RNE) da Ordem dos Advogados (OA), por alegada violação da Constituição da República Portuguesa (CRP) na parte em que esta garante que “[t]odos têm direito a escolher livremente a profissão ou o género de trabalho” (artigo 47º, n.º 1). Em causa estão disposições que exigem aproveitamento aos milhares de candidatos à advocacia inscritos no estágio da OA.

 

O estágio para advogado tem duas fases: a primeira tem a duração de seis meses e “destina-se a fornecer aos estagiários os conhecimentos técnico-profissionais e deontológicos fundamentais e a habilitá-los para a prática de atos próprios da profissão de competência limitada e tutelada”; a fase complementar tem a duração de 18 meses e “visa uma formação alargada, complementar e progressiva” de modo a prepará-los para o exercício pleno da advocacia.

 

As normas do RNE que o TC revogou estabeleciam que os candidatos que tivessem efetuado dois estágios consecutivos sem aproveitamento só poderiam inscrever-se para um terceiro depois de decorridos três anos. E isso porque a OA não pode nem deve estar a dar formação profissional, repetidamente, a quem não está em condições de assimilar essa formação por falta dos conhecimentos jurídicos de base que só as universidades podem ministrar.

 

Na OA, um estagiário que reprove no exame final da fase complementar pode repetir o exame; se voltar a reprovar pode repetir toda essa fase do estágio; se depois voltar a reprovar no exame final pode repetir mais outra vez esse exame e se voltar a reprovar, então é que já só poderá voltar a repetir o estágio passados três anos. O que o TC agora veio dizer é que essa exigência viola o direito de escolha da profissão e, portanto, que esses estagiários podem reprovar indefinidamente, sendo a OA obrigada a oferecer-lhes tantos estágios quantos eles queiram.

 

Esta decisão surge cerca de um ano depois de o TC ter também declarado inconstitucionais outras normas do mesmo regulamento estabelecendo que o acesso ao estágio de advogado seria efetuado através de um exame nacional de acesso, apenas para os licenciados em direito que tivessem tirado o curso após o Processo de Bolonha, ou seja, com três ou quatro anos de licenciatura. Os que tivessem o mestrado ou uma licenciatura com cinco anos acediam ao estágio sem necessidade desse exame.

Sublinhe-se que o acesso à magistratura é muito mais gravoso, pois, agora, só os mestres em direito podem entrar para o Centro de Estudos Judiciários e, mesmo assim, só através de um exame igual ao que o TC declarou inconstitucional na OA. O próprio Estado reconhece, pois, que os novos licenciados não estão preparados para receber formação para uma profissão forense, já que nem com um exame os deixa entrar no CEJ.

 

Todos os anos, a OA é obrigada a admitir vários milhares de licenciados em direito que não conseguem entrar na magistratura, no notariado, nas conservatórias, na Função Pública ou aceder a qualquer outra profissão. Para o TC é totalmente indiferente que isso destrua a dignidade e a credibilidade de uma profissão que a CRP (artigo 208.º) define como essencial à administração da justiça.

 

O que o TC pretende, no fundo, é obrigar a OA a receber e dar formação a milhares de licenciados impreparados juridicamente, diplomados por universidades que mercantilizaram totalmente o ensino do direito e exploram inescrupulosamente as ilusões de uma juventude sem esperanças, vendendo-lhes licenciaturas que, em bom rigor, não servem para nada e que até o Estado (que as criou) rejeita.

 

Infelizmente, o TC não percebe que a OA não existe para garantir o direito à profissão de ninguém, mas sim para garantir à sociedade que aqueles que vão exercer a advocacia estão preparados para isso. É essa a função da OA e não outra. Por mim, garanto que, enquanto for o bastonário, a OA cumprirá escrupulosamente as decisões dos tribunais, mesmo as decisões erradas como esta do TC. Mas garanto também que aqueles que acederem à profissão estão em condições de merecer a confiança dos cidadãos, pois a OA não venderá cédulas profissionais de advogado como as universidades têm estado a vender diplomas de licenciatura em direito.

       

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