Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
O Financial Times publicou recentemente um vasto conjunto de artigos em que se questionavam as possíveis deficiências no capitalismo. A opinião geral é que os tempos de hoje não são os melhores tempos para o capitalismo. O crash financeiro revelou uma fraqueza crónica na teoria económica dominante cuja confiança na eficiência dos mercados de capitais incentivou a desregulamentação e assim ajudou a criar os nossos problemas actuais. Os trabalhos de Hyman Minsky em que sugere que as crises financeiras recorrentes são “quase que inevitáveis” não poderia ter sido mais esquecido do que aquilo que ele foi, isto é, foi esquecido de uma forma absoluta. Apenas algumas, poucas, centenas de economistas mais velhos e banqueiros pareciam estar a ver o que estava para acontecer.
A dívida também provou ser incómoda, com os governos e as pessoas, singularmente, a permitirem-se que os rácios da dívida se tornassem difíceis de gerir e com grande risco para a economia, enquanto as políticas do governo e os impostos em especial incentivavam ainda mais a situação de crise em vez de se fazerem mudanças efectivas para o seu controlo.
Nos últimos 20 anos, os gestores das grandes empresas começaram a ter práticas estranhas, bem diferentes das anteriormente seguidas. Os seus proprietários nominais – os accionistas – normalmente detinham os títulos por poucos meses, vendendo-os sucessivamente, e faziam parte de instituições, com pouco ou nenhum interesse nos assuntos destas mesmas grandes empresas com o resultado que os seus dirigentes apareceram a comportar-se como se as empresas fossem deles e agiam como se assim fosse. Os programas das stock-options transferiam a propriedade dos accionistas para os seus gestores em grandes fatias e estes eram premiados pelos seus resultados de curto prazo. Uma consequência destes comportamentos foi um incentivo distorcido que incentivou a alavancagem e outras formas de rebentar com o dinheiro das outras pessoas. Os conselhos de administração demonstraram pouca capacidade de intervenção e quando a tiveram era já fora da altura própria e genericamente o que faziam tornava sempre a situação ainda pior, num perfeito desastre …
As remunerações totais nos Estados Unidos para os altos quadros, tipicamente sem nenhuma oposição pelos responsáveis nas grandes empresas pela tributação das remunerações, subiram em percentagem da média por trabalhador de 40 vezes na era Eisenhower a mais de 600 vezes hoje, sem que tenha havido nenhuma indicação da melhoria geral da qualidade destes gestores em termos de talentos.
Poucas remunerações estavam seriamente relacionadas com os resultados a longo prazo das respectivas empresas. A desigualdade antes de impostos aumentou na maioria dos países mas foi compensada por aumentos fiscais nalguns deles. Nos EUA, estranhamente, as mudanças na tributação fiscal acentuaram as desigualdades ainda mais. Esse aumento nas desigualdades foi devido ao facto de que a maior parte de todos os acréscimos de produtividade havidos foram “capturados” por uns poucos, enquanto a remuneração média por hora de trabalho permaneceu, facto sem precedentes, inalterada desde há 40 anos ! Isto terá tido como efeito reduzir o ritmo do aparecimento do progresso económico e tornou-o até muito mais instável enquanto colocava o trabalhador médio numa situação de endividamento e, em seguida, dada o aparecimento da crise, obrigava-o a cortar nas despesas.
Esta lista está longe de ser lista exaustiva quando esta já é, na verdade, impressionantemente longa, mas parece-me poder ser basicamente tomada como representando as questões fundamentais na actividade empresarial e a maior parte de tudo isto foi bem pior nos EUA do que noutros países capitalistas. Os países escandinavos, por exemplo, parecem estar a enfrentar este tipo de problemas de uma forma razoavelmente satisfatória. Presumivelmente, os economistas irão lentamente digerir as lições destes últimos anos e irão desenvolver teorias realistas e úteis. Podemos pelo menos esperar que assim seja. Tentativas e erros, reformas e senso comum, tudo isto em conjunto parece ser razoavelmente a via para a solução destes problemas. Eles são problemas irritantes e debilitantes, hoje, mas isto não nos deve levar a colocarmo-nos de joelhos. Houve, contudo, alguns problemas, penso, que raramente vieram à tona ou nunca apareceram nos debates do Financial Times e que deveriam muito bem aí estar. Na minha opinião, eles até ameaçam mesmo a nossa sobrevivência e é nestes problemas que gostaria de me concentrar.
O capitalismo tem avançado através de uma darwinística série de experiências e de erros, que ainda se continuam a repetir. Por enquanto, o capitalismo tem-se sintonizado a todo e qualquer custo, a todo e qualquer preço, com um rápido crescimento económico. Circunstâncias, tais como a revolução dos hidrocarbonetos e a consequente explosão do aumento da população têm permitido a obtenção de margens de lucro elevadas e de um elevado crescimento que por sua vez assim têm sustentado o próprio crescimento. As altas continuadas altas margens de lucro, por sua vez, têm levado e habituado os capitalistas – ou executivos de empresas se preferir – a definirem elevados objectivos para todos os investimentos. O objectivo de 14% expresso pelas taxas de desconto que foi considerado como um mínimo na década de 90, por exemplo, reduzia para metade o valor actual de um dólar futuro em cada 5 anos, de tal modo que o valor actual de um dólar futuro daqui a 10 anos valerá hoje apenas 25 cêntimos; o dólar futuro daqui a 20 anos valerá hoje 6 cêntimos; e o dólar futuro dos próximos 50 anos valerá hoje um décimo de um cêntimo! É espantosamente surpreendente que isto até agora continue a ser ignorado.
Por exemplo, imaginemos que as acções actuais de uma dada empresa custarão em traços gerais à sociedade, um prejuízo de mil milhões de dólares daqui a 50 anos. Além disso, vamos admitir que todos os custos serão definitivamente impostos à empresa. A empresa iria sentir que o valor desse prejuízo hoje, o seu valor actual, diríamos, seria como equivalente a apenas um simples milhão de dólares na redução dos seus ganhos. Por que eles se haveriam de ralar?
Em contraste, o rendimento do cidadão médio é provavelmente composto a uma taxa em média de 1,5% ao ano, os seus investimentos sem risco serão imputados a uma taxa zero de actualização (o valor hoje de uma obrigação a 30 anos, descontada a inflação), e um investimento seu em capital será talvez imputado à taxa de 4%, líquida da inflação e dos impostos. Para assumir a maior destas três taxas, o prejuízo do milhar de milhões à taxa de desconto de 4% que vai representar para o cidadão comum, que é quem assume a factura daqui a 50 anos, será sentido não como sendo 1 milhão, mas sim como sendo 100 milhões. E para alguns propósitos sociais, a taxa real de 4% é ainda muito alta. Certamente, por exemplo, não deve o valor, e, portanto, o custo, da vida de uma criança daqui a 50 anos ser idêntico ao valor ao custo de hoje? Pode-se pois facilmente ver como as perspectivas de uma grande empresa sobre os prejuízos potenciais futuros pode significar uma incompatibilidade dolorosa com a dos cidadãos normais e com a sociedade em geral. As consequências desse facto não só poderão ser desastrosas como provavelmente o serão, na verdade. Alguns poucos mas cuidadosos leitores devem-se lembrar da minha história “Farmer and The Devil” de Julho do ano passado. Nesta história mostrei como um bom agricultor capitalista teve de assinar um contrato com o Diabo em que este garantia a quadruplicação do rendimento do agricultor através de práticas agrícolas muito agressivas sobre o seu solo, com um custo oculto de 1% ao ano no seu solo. O agricultor teria enormes lucros e ansiosamente refazia os primeiros e vários contratos até 20 anos para acabar já sem solo, sem comida, e em que durante cem anos ninguém aí trabalharia. No entanto, cada vez que o agricultor refez os seus contratos fez as coisas sensatamente no quadro do sistema capitalista. Neste caso, a “mão invisível” de Adam Smith falhou, e fatalmente é assim.
Danos à sociedade nos bens ditos ” comuns”, também conhecidos como “externalidades” têm sido discutidos desde há décadas, embora o mais ameaçador deles – seja a perda de nossa capacidade colectiva em nos alimentarmos, através da erosão e do esgotamento dos terrenos – tenha recebido pouca ou nenhuma atenção. Não tem havido verdadeiras e úteis propostas, até para sabermos como é que vamos criar uma sensibilidade colectiva de sobrevivência, como é que vamos criar políticas de longo prazo sobre os problemas dos bens públicos, os problemas “comuns”. Deixá-los entregues ao capitalismo e para que este nos dê essa correcção, maximizando os seus lucros de curto prazo, é perigosamente ingénuo e erra o alvo: o capitalismo e as grandes empresas não têm absolutamente nenhum mecanismo para lidar com estes problemas, e vê-los através de uma lente empresarial da taxa de actualização ou de desconto, significa que os nossos netos realmente não têm nenhum valor.
Ao deslocar o problema dos bens públicos dos horizontes de longo prazo para os horizontes de curto prazo é claramente imediato que o capitalismo, em geral, não tem nenhum sentido de ética ou de consciência. O quer que seja que o Supremo Tribunal possa pensar, o certo é que não se está a falar de uma pessoa. Porque é que uma empresa há-de dar até um centavo que seja para o bem comum se este não lhe é exigido por lei ou a menos que nisso ela veja como é que aquele centavo pode ser recuperado com lucro no futuro, quando até ter uma boa imagem pode ser bom para a empresa ? Os altos dirigentes éticos podem orientar eticamente uma empresa mas apenas por um tempo e este é então um efeito do capricho e é temporário. Os seres humanos éticos também podem impor a sua vontade sobre as sociedades, singularmente ou em massa, pela redução de seu compras ou, ao contrário, pelo aumento e as empresas podem antecipar tudo isto ou até mesmo influenciar este comportamento através de uma campanha inteligente de publicidade , como, por exemplo “carvão limpo”, que é o meu exemplo favorito. Mas tudo isto é bastante diferente do altruísmo empresarial das grandes empresas. Assim, nós podemos queimar o nosso planeta e as empresas podem oferecer maravilhosos e rentáveis equipamentos economizadores de energia, mas fá-lo-ão para os seus lucros de hoje, não para pouparem o planeta amanhã.
E pode ficar ainda pior, porque o que o capitalismo sempre teve dinheiro com que comprar influências. Actualmente o capitalismo com ética nos Estados Unidos está morto e já foi para o céu. A empresa agora é livre para gastar o dinheiro que entender para influenciar os resultados políticos e nem sequer precisa de o dizer a ninguém, pelo menos, ao conjunto dos seus próprios accionistas, tecnicamente os seus proprietários. Assim, as grandes empresas, ricas, podem exercer tanta influência política que agora até já alcançaram um perigoso grau de influência sobre o Congresso. E as questões que eles mais influenciam são precisamente os que mais nos importam a todos nós, aquelas que são as mais importantes para o bem-estar da sociedade a longo prazo, de facto as que são garantes da nossa própria existência. Assim, tendo obtido enormes benefícios da Natureza a danificá-la estas agora estão completamente livres e então todas as tentativas de controle pela parte do governo são combatidas com um lóbi caro e com a publicidade. E uma das primeiras vítimas nesta campanha tem sido a verdade. Se os factos científicos sugerem que custos e limites têm de ser impostos às grandes empresas para proteger o meio ambiente a longo prazo, então contra a ciência será feita uma oposição materializada numa desinformação inteligente. E isto está a começar a voltar a ser uma história antiga e óbvia, mas porque a propaganda é boa e, apesar da solidez dos dados, daí resulta que metade das pessoas acreditam que o problema é o de estarmos perante um governo a funcionar de forma selvagem, loucamente a querer controlar tudo. Assim, o “complexo industrial” (ou partes dele) luta para aumentar as fragilidades inerentes ao próprio capitalismo. E estes deliberadamente estão a tornar cada vez mais difícil que se venha a alcançar as decisões de muito longo prazo que poderão servir a todos nós. A influência das empresas de tabaco deliberadamente obscureceram o trabalho da ciência para proteger os seus elevados lucros e com um custo enorme para a sociedade, quer em termos de custos de saúde quer em termos de vidas é uma analogia perfeita para as indústrias de energia que trabalham intensamente para confundir o público sobre as medidas científicas quanto aos danos feitos à saúde e ao meio ambiente . No entanto, também esta questão é surpreendentemente esquecida.
(Continua)