Dias de Melo Não é a terra do Pico que me há-de roer os ossos
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José Dias de Melo (1925-2008), escritor açoreano, nasceu na Calheta do Nesquim, Ilha do Pico. Professor primário de carreira, foi colaborador assíduo da imprensa regional e nacional e um profundo conhecedor da temática baleeira e da emigração. De entre os seus livros destacamos “Pedras Negras” (1964) a que pertence o texto que apresentamos hoje aqui, “Mar Pela Proa” (1976) e “Inverno Sem Primavera” (1996).
Começava a sentir-se homem, Francisco Marroco. E numa noite, na quadra das vindimas…
Velhos, novos, crianças – toda a gente andava por vinhas e adegas, na apanha e pisa das uvas. Escorria o mosto dos lagares e à noite bailava-se pelos caminhos. Havia lua – uma lua enorme.
O pai de Francisco Marroco enchia a noite com os harpejos da sua viola, a mulher sentava-se ao lado, encolhida no seu xaile, rapazes e raparigas cantavam, os pares rodopiavam nas voltas da chamarrita.
E nas voltas da chamarrita andava a Maria do Roque nos braços do seu par. Francisco Marroco não despegava dela os olhos: dos seus cabelos pretos, do seu rosto moreno, dos seus olhos negros, do seu corpo airoso de busto bem feito, com os seios pequeninos recortados por dentro da blusa de chita. Todo a tremer e o sangue como lume a queimar-lhe as veias, encheu-se de coragem Francisco Marroco e atirou-lhe um arrifão. Ela ruborizou-se, enrijou o semblante. Porém, quando passava no cirandar da chamarrita, deitava-lhe um cantinho do olho, disfarçadamente, à laia de acaso. Afoitou-se mais Francisco Marroco – e, bailada a última chamarrita, aproximou-se e pediu a Maria que bailasse com ele a chamarrita a seguir.
A viola nas mãos do pai e as cantigas nas gargantas dos cantadores e das cantadeiras – eram sinfonia de emoção a ressoar pelas vinhas, pelos rochedos da costa, a perder-se distante nos longes do mar. Do céu, derramava a lua, sobre coisas, almas e pessoas – oceanos de ternura.
Assim Francisco Marroco ficou tendo a sua namorada.
Depois, na volta do trabalho, apartava-se dos companheiros, esgueirava-se cauteloso por veredas e canadas ao encontro de Maria. E diziam-se as mesmas palavras que homens e mulheres enamorados se têm dito desde que o Mundo é Mundo:
– Tu és a estrela da manhã que me ilumina a vida, Maria! – e Francisco Marroco apertava nas suas as mãos pequeninas do seu amor.
– Meu pai anda desconfiado. Se descobre!… – acautelava Maria.
– Hei-de falar com ele – prometia Francisco Marroco.
E Maria deixou de aparecer. Francisco Marroco, a angústia a oprimir-Ihe o coração, acobertava-se da noite, empinado à parede do caminho defronte do portão dela, a olhar a vidraça do quarto onde a sabia dormindo. Entrava em casa de madrugada, a tempo só de pegar no alvião para recomeçar um dia mais de trabalho.
E quando novamente se encontraram:
– Meu pai – soluçava Maria – não me alembro de o ver tanto zangado. Bateu-me, fechou-me em casa. Hoje, foi ao mato. Eu rebentava de saudades. Minha mãe deixou-me vir. Que, haja o que houver, eu hei-de ser tua! Toda tua – ou de mais ninguém! – E atirou-se aos braços de Francisco Marroco, e chorou, o corpo todo convulsionado e a cabeça encostada ao peito dele.
E Francisco Marroco beijou pela primeira vez aqueles cabelos, aqueles lábios, aqueles olhos que não sabiam mentir. E foi ao encontro do velho Roque.
– Tu – e injectavam-se os olhos do velho – que não tens onde cair morto, casar com a minha filha!? Antes vê-la enterrada no cemitério! Cheirava-te o que era meu! – E num esgar de escárnio: – Vá! Arreda da minha vista, ladrão!
… E naquele instante Francisco Marroco se decidiu.
Dias decorridos, encontrou João Peixe-Rei num caminho deserto.
– Homem! Andava inquieto pra te ver! – disse o amigo.
– Também eu!
E sentaram-se os dois à sombra da parede.
– Meu irmão escreveu. Desembarcou na América há dois meses. Não tarda aí o capitão Grilo…
– E tu?
– Não tenho mais que pensar.
– Pois…
– O meu rapaz vai-se fazendo. Daqui a dias é um homem e eu estarei prà’i um calhambeque velho sem lhe poder mais valer. Vou dar o salto, assim o capitão me queira levar.
– Quero d’ir contigo.
– Queres d’ir comigo!?
– Quero — respondeu com firmeza Francisco Marroco.
E, contada a história do seu amor:
– Mal arranje dinheiro que afogue a boca daquele cigano do Roque, venho casar com Maria – concluiu. – Mas é só casar e andar, que não quero mais saber disto. Tenho pensado muito; O Ano da Fome, secas, ciclones, fogo de vulcões, terramotos… Não! Não é a terra do Pico que me há-de roer os ossos!
(in Dias de Melo, Pedras Negras, Vega)
Nota: na rubrica “Terna é a noite” vamos hoje ouvir uma canção que faz referência ao autor.