Um Café na Internet
(Continuação)
Além daquele havia no bispado mais dois outros cónegos.
Um, de etnia negra, natural do país, com extensa família a seu cargo, já ultrapassara os cinquenta anos de idade. Corpulento, dispunha de grande vigor físico. Possuidor de grande apetite, ingeria enormes pratadas de alimentos com assinalável rapidez e ruído.
Era o principal responsável pela Matriz, a paróquia mais populosa da cidade, quer pelos actos litúrgicos realizados na igreja, quer pelas cerimónias de baptismos, casamentos e óbitos e pela escrituração dos registos nos respectivos livros.
Um dia ao almoço, Filipe aproveitou para o informar, na presença do bispo, que estivera no cartório da Matriz a consultar os livros de registos paroquiais e que tinha ficado admirado com a boas condições de saúde da população da cidade, tendo em conta os trinta a quarenta mortos anuais lançados nos livros, no decurso dos últimos quatro ou cinco anos.
O bispo, que assistia à conversa, ao ouvir tais números, virou-se admirado para o cónego, que embaraçado lá foi dizendo que se esquecia com alguma frequência, de efectuar o assento dos óbitos no livro para tal destinado.
Falta que provocou o desagrado do chefe da diocese, perturbando o ambiente de alegre confraternização que habitualmente se desfrutava à volta da mesa durante as refeições e que Filipe inadvertidamente prejudicara.
O outro cónego era um italiano quase nonagenário, de face vermelha e baixa estatura. Vivia há décadas na área de influência do bispado, cuja história estudara através de entrevistas gravadas aos membros mais velhos das diferentes comunidades da região. Homem divertido repetia as mesmas anedotas até à exaustão.
Entre as freiras mais novas, algumas das quais pareciam mais vocacionadas para a vida laica, encontravam-se as que se ocupavam da prestação de cuidados de saúde à população, uma das áreas mais carenciadas de ajuda no território.
Havia também uma irmã religiosa, já cinquentona, destacada para o apoio à juventude, que tentava encher bolas de futebol com uma bomba de bicicleta e oferecia rebuçados aos futebolistas nos intervalos dos jogos de futebol. Jogos no decurso dos quais não era raro ver macacos vindos das matas circundantes, calmamente sentados sobre as balizas assistindo ao desenrolar do encontro.
Um irmão franciscano, vindo das Filipinas, natural de um país da América Latina, era outro dos elementos que assessorava o bispo. De corpo esquálido, rosto encovado e pálido, longas e raras barbas grisalhas, lembrava as figuras místicas da pintura religiosa espanhola.
Era o responsável pela contabilidade financeira da diocese. Homem de cerca de cinquenta anos de idade, possuía hábitos de vida bem pouco singulares. Alimentava-se mal, quantitativa e qualitativamente, calçava sandálias e vestia calças e camisas já puídas pelo uso e, por regra, dormia de dia e trabalhava de noite.
Contudo, parece que nem sempre o labor nocturno que efectuava no interior do seu quarto se relacionava com o deve e o haver das finanças diocesanas. Muitas das noites passava-as fechado nas suas dependências, acompanhado da cozinheira, mulher negra já não muito jovem, que não o podia ajudar na escrituração da contabilidade, uma vez não sabia ler nem escrever.
Existia também um leigo que se ocupava da construção de novos edifícios necessários às diversas actividades da igreja, residente há vários anos na sede da diocese. Individuo ainda na casa dos quarenta anos de idade, natural do norte Portugal, que já então reunia elevado pecúlio. Pedófilo assumido que, a pretexto de se preservar da Sida, escolhia como parceiras para as suas relações sexuais, meninas entre 10 e 12 anos de idade. A sua presença tornava-se mais repelente quando, certas noites, se demorava com as meninas mais que o que contava, chegando à sala de jantar quando já todos se encontravam a meio da refeição. Silencioso sentava-se à mesa de mãos entrelaçadas e em aparente recolhimento rezava fervorosamente.
No vértice da direcção da comunidade católica encontrava-se, como era óbvio, o bispo. Indivíduo já septuagenário mas pleno de energia. A sua capacidade e disponibilidade para efectuar trabalhos que em princípio não lhe competiam eram mais que evidente. Por receio que a distribuição dos alimentos entre os habitantes das aldeias da periferia da cidade, em especial milho, se atrasasse ou fosse desviado dos verdadeiros destinatários – as populações mais carenciadas – ele mesmo carregava à força dos braços os sacos de cereal para a viatura de caixa aberta que, na ausência do motorista, ele próprio conduzia.
Filipe vira-o mais que uma vez chegar só, ao edifício da diocese, guiando a carrinha, de batina branca suja do pó vermelho da picada e com o rosto coberto de suor. Recordava-se de em certa ocasião, ao fim da tarde de um dia de trabalho, o ouvir afirmar, já cansado mas satisfeito com a sua forma de actuar, que “tinha tanto que fazer que mal tinha tempo para rezar”.
Aquele alto representante da igreja católica era, na opinião de Filipe, pela a disponibilidade em descer lá do alto do seu pedestal e intervir directamente junto das populações na tentativa de lhe mitigar a fome, um bom exemplo daquilo que a igreja católica muito pregava e pouco praticava.
Filipe, o novo inquilino da residência dos religiosos católicos era por aqueles dias considerado sacerdote pela generalidade das pessoas que com ele se cruzavam na rua.
A insólita situação divertia-o de sobremaneira, em especial quando pensava como tal havia de fazer rir os seus familiares e amigos em Portugal, caso a pudessem presenciar.
Acontecia que o novo colaborador da diocese não era clérigo, nem membro de qualquer ordem ou congregação católica, nem crente de qualquer outra religião. Filipe era professor aposentado que aceitara deslocar-se para aquela região de África com a finalidade de colaborar, a título gracioso, no apoio aos professores do ensino secundário das escolas sob responsabilidade do bispado.
(Continua)