O ESTADO DE APODRECIMENTO DO FUNCIONAMENTO DO APARELHO JUDICIAL EM PORTUGAL DENUNCIADO POR RICARDO SÁ-FERNANDES – por Paulo Rato
Um artigo-testemunho de Ricardo Sá-Fernandes, que saíu no jornal “Público” do passado dia 14 de Maio – e que, com a devida vénia, transcrevemos – vem tornar mais nítido o retrato da vergonhosa situação da Justiça em Portugal, partindo de uma situação pessoal que este advogado se dispõe a enfrentar, com a teimosa coragem dos que não aceitam a iniquidade, venha ela de onde vier.
Sublinhe-se que “justiça” significa, aqui, o complexo aparelho que aplica o aglomerado de textos legislativos por que se rege a nossa República, dita “de direito”: nada tem a ver com o conceito filosófico de JUSTIÇA, com a qual, como piedosamente avisava o saudoso professor conimbricense Orlando de Carvalho os seus alunos, nada tem a ver o “Direito”, que se preparavam para estudar na Universidade.
Da responsabilidade de quem legisla e de quem aplica o que é legislado, esta situação decorre de uma circunstância mais geral e, em meu entender, dificilmente superável nos tempos mais próximos: a estupidez e incultura predominantes, cá como no resto do Mundo, nas instituições em que os Estados se organizam (como nos indivíduos que corporizam tais instituições), o que muito concorre para a sua submissão a “quem manda” – e quem manda é quem tem mais dinheiro.
Para quem se incomoda com as intervenções “desabridas e inconvenientes” de Marinho e Pinto, actual e incómodo Bastonário reeleito da Ordem dos Advogados, este texto demonstra a razão e a sólida base da maioria das suas afirmações: quem mais responsabilidades assume na aplicação da Justiça – que deveria dignificar – é, precisamente, quem mais a distorce e avilta.
A dificuldade, que referi, em ultrapassar esta situação, reside no facto de a qualidade intelectual e humana de juízes, procuradores e advogados reproduzir, com exactidão, o campo de recrutamento de onde são oriundos, o qual é, por sua vez, a consequência da acção deliberada e, nos tempos que corre, cada vez mais intensa e aprimorada, das classes dominantes de, a todos os níveis de ensino e de comunicação de massas, transmitirem a discentes e cidadãos em geral, as bases da sua própria ideologia, apresentando-a como “a única possível” de aplicar às “sociedades modernas”, enquanto lhes sonegam os instrumentos de crítica que permitissem pôr em causa as falsas “evidências” com que os ofuscam. As excepções dos que conseguem escapar “ao sistema”, pela sua rara capacidade intelectual e integridade de carácter – como aconteceu, há pouco, com um juiz de Beja, que não hesitou em enfrentar a ganância da Banca na exploração dos seus clientes – apenas confirmam o enorme peso da massa informe dos que confirmam a regra…
Fiquemos, então, com a corajosa denúncia pública de Ricardo Sá-Fernandes.
NÃO ME CALO
1. Vale a pena combater a corrupção? Para dois juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, não.
Como deverá uma pessoa agir para não ser perseguida nem pelo corruptor nem pela justiça? Ou foge e fica calada, ou aceita o suborno ou, se achar que isso é insuportável, denuncia anonimamente, de preferência através da internet.
Mas há uma coisa que nunca deverá fazer: assumir que denuncia a corrupção, precaver-se contra os ataques do corruptor e colaborar com as autoridades. A não ser que seja tolo e queira ser perseguido e enxovalhado.
2. Em 2006, fui contactado por um indivíduo que, telefonando sob uma identidade dissimulada, pediu um encontro particular num bar de um hotel, para tratar de assunto do interesse de ambos.
Desconfiado de uma abordagem criminosa, fui, mas gravei a conversa, para me poder defender, se o sujeito pretendesse “virar” a conversa contra mim e tentasse passar de criminoso a vítima. O que veio a acontecer e é um “clássico” nas máfias da corrupção.
A conversa era para tentar corromper o meu irmão, vereador em Lisboa. No dia seguinte, depositei a única cópia da gravação no Ministério Público. E denunciei a corrupção.
O MP pediu-me para ir a novo encontro e obter nova gravação, agora com autorização judicial. E assim foi. Tive mais duas conversas que foram prova decisiva na acusação e condenação do corruptor, a qual, finalmente, foi garantida em Janeiro passado, por um acórdão do Supremo Tribunal.
3. Esta história devia ter tido um desfecho rápido e útil – exemplar – para a prevenção da corrupção.
Todavia, a condenação do corruptor percorreu um sinuoso caminho e eu acabei a enfrentar vários processos, de natureza criminal, civil e disciplinar, contra um exército de juristas por ele contratados para proteger o seu objectivo ilícito de ficar dono do maior e mais bem situado terreno disponível para construção, em Lisboa (na ex-Feira Popular).
4. Depois de absolvido na 1ª instância e de o MP ter sustentado a justeza da decisão, fui agora condenado por dois juízes da Relação num acórdão com assinaturas ilegíveis (mas um deles já veio a público gabar-se da sua autoria), pelo crime de gravação ilícita: a que eu próprio fiz, para evitar que o corruptor pudesse convencer alguém, como tentou, de que eu é que o teria aliciado – e que imediatamente entreguei ao Ministério Público.
5. O acórdão utiliza dois argumentos. Diz que, tendo eu optado por ir ao encontro, fui eu que criei o perigo! Por outro lado, numa extraordinária ponderação de valores, não vislumbra qualquer supremacia do meu direito à honra e à defesa da verdade sobre o direito à palavra do corruptor.
Duvidam que um tribunal superior do vosso país sustente tais propósitos insultuosos para qualquer consciência cívica? Leiam o acórdão e julguem por vós.
6. Mas o mais grave é que o tribunal, para legitimar a condenação, sem pedido de ninguém e sem consultar nenhuma das provas do julgamento, decidiu alterar a matéria de facto dada como assente, invertendo o seu sentido.
Onde se lia que não fora provado que eu actuara sabendo da natureza criminosa da minha conduta – como de facto não sabia, com uma convicção partilhada por juízes, procuradores, advogados e jurisconsultos de todo o mundo (também em Portugal) –, passou a constar que eu bem sabia que estava a cometer um crime, numa decisão eivada da mais repulsiva arbitrariedade.
Nem pediram à 1ª instância a fundamentação que alegaram que faltava, nem determinaram novo julgamento, nem sequer aplicaram uma pena (remetendo tal escolha para a 1ª instância, numa singular originalidade). Parece que aquilo que importava era assegurar que o denunciante da corrupção não se ia “safar”.
7. Este acórdão alcança objectivamente dois fins fundamentais: a) intimidar quem quiser denunciar a corrupção; b) humilhar o denunciante concreto deste caso, voz demasiado incómoda.
8. Mas eu não me rendo. Poderão os juízes ameaçar-me com novos processos, como um deles já fez. Poderão prender-me. Mas não me calarão.
A justiça é o mais precioso dos valores da vida em comunidade. Não pode estar nas mãos de gente desta. Por isso, continuarei este combate. Pela minha dignidade e por quem confia em mim. Pela justiça portuguesa, incluindo pela grande maioria dos juízes portugueses. Pela decência na sociedade portuguesa.