2. As ilusões iludem-nos.
Sonhamos com a paixão, sonhamos com a continuidade de nós, procuramos a pessoa que seja permitida pelos padrões da cultura. Amámo-la, seduzimo-la, iludimo-la, iludimo-nos. Confiamos. Entrego o nosso pensamento a seguir o sentimento. Um sentimento que não pensa porque manda em nós a paixão. E fabricámo-la. Com essa nossa paixão, na pessoa que queremos que seja a companhia da nossa vida. Auto estima de si própria, abertura ás novas ideias, esperança de trazer junto com ela, a continuidade da memória do nosso grupo e da nossa memória individual transferida em conversas doces e noturnas. Do entardecer das andorinhas. Quando chilram ao sol da tarde. E não ouvimos mais ninguém. Nem conveniências sociais, nem amizades entre famílias, nem objetivos que parecem serem partilhados enquanto se fala nesses começos da paixão. E louvamos a capacidade transcendente desse ser que abre em nós os olhos à vida.
Os olhos sobre uma vida, pouco simpática na solidão do nosso quarto, divertida e calma ao sentirmos uma outra pessoa ao pé de nós. Dormimos com calma e descansados. Ao entender que o mundo está feito para andar a dois. E, quando possível, a três, a quatro, ou mais. Nós próprios, cá dentro do nosso padrão, sabemos o que queremos. E, goste ou não, o incutirmos no ser que aparece um dia em frente de nós e admiramos, existam ou não, todas as qualidades, coincidam ou não, com as que nós vamos tecendo ao longo do tempo. E esperamos. Nos sonhos. No definir da nossa vida. No iludir a nossa vida. E damos tudo para bem parecer ao ente amado.
Ente amado que tem as suas próprias ideias. Os seus próprios tecidos da vida. Que brilha com o sol esplêndido da sua própria abertura à vida. E vamos ouvindo as notas que cantam e desenham o que essa abertura define. Abertura, conjunto de frases musicais por nós transferida para a nossa própria sinfonia. Se dermos por isso. Porque o conjunto dos olhares e dos ouvires, fazem de dois, um dueto. De Gigante e Cabeçudo.
Porque todo casal começa pela harmonia, com lei ou sem ela, com ritual ou sem ele. Com a harmonia do delinear o futuro concreto. Que passa pela intimidade mais calada. Intimidade cujo solfejo é uníssono: quando um sente que o seu é do outro, enquanto o outro pensa que o seu ficou transferido. E vamos cantando esse nós que nos queremos tanto. E vamos programando o apoio de si pelo outro e do outro pelo si. Iludidos na idade de construir a vida, essa idade augurada pelo rouxinol a cantar as notas misteriosas dum futuro que será diverso ao presente das cotovias que ralham. Não haverá homem que mande nem mulher que obedeça, não haverá mulher em casa nem varão que fique enredado no seu trabalho ou com os seus amigos. Caso forem homem e mulher. Não haverá outra pessoa além da pessoa amada e desejada, que sintoniza com a memória social da vida. E no caso de não sintonizarem em conjunto, afastar-se-ão do que faz dano. E vamos andando a fazer o caminho. A espera do que virá a ser o futuro construído em conjunto. Futuro de certeza, brilhante pela companhia escolhida e aceite.
É o começo da vida a dois, quando já as pessoas adultas, entendem que desejam a sua íntima companhia e procuram nas conversas confirmar esse fazer bem que eles sentem. Iludidos pela ilusão de cada um continuar a sua abertura aos factos da vida. Na esperança de poder continuar com a sua própria aventura pessoal que fez sua enquanto quanto crescia no lar anterior, diferente do lar que agora, enquanto é construído, o guarda. Crescidos em sítios diversos, talvez perto, talvez de outras terras, espera-se transferir a ilusão aprendida dos seus, a uma outra pessoa. Criar perante nós o que desejamos seguir, o nosso entender da interação dos adultos anteriores. E decidir se será ou não assim que connosco aconteça.
Pensamento do começo da vida que esquece o suspense de cronologia do tempo, esse tempo que introduz outras ideias na conjuntura que nós vivemos. Conjuntura que pensamos ser nossa para sempre, porém por nós manipulada e bem agarrada, traçando linhas de independência entre esse novo lar e o lar que formou o nosso pensamento. Conjuntura pensada ser a nossa, sem reparar que há instituições, há outros a percorrerem o caminho da nossa vida, inútil desejo de auto determinação do acasalamento governado pela memória social a manipular os nossos desejos e as nossas definições.
Conforme os tempos. Conforme as formas que aparecem desde fora, na nossa vida individual. Vida que não será governada por um e obedecida por outro. Gigantes que batem nos Cabeçudos que precisam de nós para construírem a história sem a qual nem sobrevivemos. Conjuntura atrás de conjuntura, é a marca do tempo ignorada pelos dois que começam a trilhar o novo lar. Sem reparar, quer nas conjunturas, quer na herança trazida do lar antigo, esse de gerações através da cronologia que faz de cada indivíduo, uma entidade diferente da pensada quando conhece a companhia do que, pensa-se, partilhará os seus dias.
Suspense em três dimensões trazido até nós pela necessidade de criar uma ilusão que permita separar o que antes estava entrelaçado entre gerações, e juntar o que doravante passará a ser a realidade da vida. Nem longe nem perto fisicamente do grupo anterior, nem longe nem perto do grupo anterior crescido no nosso ideal de vida. Ilusões que iludem e permitem a um par começarem a vida juntos. Com receio, mas com essa valentia que a paixão define ao recobrir o pensamento, valentia que nasce da ilusão do que a outra pessoa parece ser, transferência de uma para a outra. E a vida começa. Até ser arrebatada. Como sempre foi. Cabeçudos a bater em Gigantes. Gigantes a bater em Cabeçudos. Como sempre. Apesar de querer-se iludir com o se ser diferente.