MULHER A CRESCER, MACHISMO A TREMER. AFILIAÇÃO DA CRIANÇA. – 1 – por Raúl Iturra

… À Gloria González Castillo …. Mãe dos meus filhos, Avó dos meus netos
1. Introdução em forma de fandango.
A temática é imensa. O debate com a minha equipa nunca mais acaba. Porém, encurralo as ideias para começar apenas com a do título. O meu título é uma hipótese. Uma hipótese depreendida da experiência da minha pesquisa, como é habitual. Pesquisa que analisa crianças. Análise de crianças necessária para os adultos entenderem o seu contexto. Adultos a mudarem vertiginosamente nos últimos tempos. Na década de Setenta do Século XX, estudei com uma equipa, um grupo de mil mulheres casadas a viverem nas suas casas, objeto da minha investigação. As casas serviam para cuidar dos pequenos e alimentá-los. Lares dominados pelos homens, maridos ou não, pais das crianças ou não, mas lares dominados contra o prazer das mulheres. Ainda me lembro da mulher que falava do seu lar e do orgulho que sentia por ele e pelo seu homem ser capaz de lhe dizer o que fazer. E a raiva que sentia, ao mesmo tempo, porque tudo o que ela fazia, não era da sua satisfação. Mulher a não saber era do amor, mas sim da servidão. Mulher com raiva do marido, mas com o orgulho de sentir que tinha um homem que mandava e entendia o mundo. Esse que ela parecia não perceber. Mulher que falava enquanto as outras senhoras do grupo calavam a olhar para o chão. História já referida por mim num outro artigo.

Trinta anos depois, esta história aparece diferente no meu sentir. Faz-me pensar que o homem procurava amparo na mulher e vice-versa. Homem que não queria ter mais uma outra voz em casa a dizer o que fazer. Homem criado para governar o lar com palavras, sem entender as horas vazias da mulher mãe, da mulher empregada de cozinha, da mulher varredora do chão, lavadora de roupa, aquecer a cama à espera do homem que quer amar. Homem criado para mandar e aparentemente sábio na sua autoridade. Eis a filiação da infância cujo estudo me interessa e absorve. E, enquanto penso, sinto a solidão do homem, pai, companheiro, culturalmente autoritário. Machismo, dirá o leitor? Machismo, dirá a leitora? Machismo, digo eu, da mulher e do homem. Mulher a crescer, a entender o mundo além do lar. Homem habituado a ser apenas ele a perceber o mundo fora do lar. Batalha travada faz séculos e ganha hoje em dia pela luta feminina. Feminismo, onde não se dá luta nenhuma pela masculinidade. Ideia esta, a da masculinidade, certa e segura durante séculos e em várias culturas. Até que um dia a economia faz tremer, faz tremer a sociedade e o homem perde a arrogância pelo desamparo no qual fica. Desamparo que o homem sofre por parte da mulher, que entra na economia. Esse domínio definido sempre como masculino. Enganado ou não. Certo ou não. Festa ou drama. Triunfo ou derrota. Dança espalhada pelo mundo, quer no fandango, quer na lei, quer na doutrina: da costela do barro do homem, foi feita a mulher, diz o Génesis da Bíblia. Da licença do marido para a mulher trabalhar, dependia a liberdade da mesma, dizia o Código Civil Napoleónico, organizado como Código Civil Português em 1867, reformulado nos anos setenta do século XX, para autonomizar a mulher. Da orientação do homem depende a opção da mulher, tem dito o Código de Direito Canónico de 1917 e 1983; e a Doutrina Católica que governa grande parte do mundo, regulamenta a interação social e em consequência as formas sociais de entender. Recebes uma mulher, não uma escrava, costuma dizer a mulher para o homem. Vou a casa preparar a comida do meu homem, oiço dizer as mulheres pelos vários sítios onde estudo os seres humanos e as suas ideias, faz já cinquenta anos.

2. Mulher a crescer.

Mulher a crescer? Essa, uma entidade adulta? Sim senhor, mulher a crescer desde o minuto que começou a entender que sem o seu contributo económico, a casa, o lar e as crianças, não conseguiam ser sustentadas apenas com o trabalho ou contributo de um dos membros do lar: largamente o masculino. O masculino mais adulto, o masculino mais velho. Trabalho produtivo, porém, criado para uma mentalidade específica, a mentalidade que sabe comandar e tem tido autoridade ao longo de milénios. A nossa cultura greco-judaica, cristã ou não, escolheu a mulher para ser um troço da economia reprodutiva de seres humanos. Seres humanos a serem dados à luz, como Teresa Joaquim debate em 1983 e dedilha de forma mais aprofundada em 1997, como Berta Nunes analisa em 1997 e Lígia Amâncio distingue em 1994. Formas de trabalho que coagem a mulher para um canto da casa, tal e qual comentam Pierre Bourdieu em 1998: Aristóteles entendia que todo ser penetrado não tinha direito a voz, fosse masculino ou feminino. A mulher, esse ser, destinada à penetração de forma concebida pela fisiologia que nos governa, tem continuado a existir relegada ao domínio do doméstico. Quer nos factos, quer no pensamento social. Prova é, não apenas o quotidiano das pessoas no Ocidente, bem como as estatísticas a dizerem a primeira mulher Primeiro-ministro da Inglaterra, a primeira mulher Presidente duma República da Europa, e outros casos. Como nas Presidências dos Bancos, das indústrias, das Reitorias das Universidades, na direção dos hospitais, na gestão dos trabalhos da terra. Como Madame Curie, vestida de homem para assistir à Universidade, a perder o seu nome pelo casamento. Como as mulheres todas a lutarem pela igualdade com o homem, a começar pelas que reclamavam o direito a voto. Mulheres a invocar a declaração de princípios da Independência dos USA, escrita por Thomas Jefferson (1775): Todos os seres humanos nascem livres e iguais. Mulher a orientar o lar a partir da lei do divórcio. Casos históricos e públicos. Os mais cobiçados pelas pessoas que gostam do poder para controlar o que entendem, entendam ou não; os mais desprezados pelas pessoas que procuram entender que a legitimidade da autoridade está no entender com amor e sem poder… Mulher a crescer, porém, entre duas formas de perceber a feminilidade: o pensamento social patriarcal, o pensamento social feminista. Feminismo construído como movimento, feminismo fabricado pela economia que nos governa desde 1979, essa de Milton e Rose Marie Friedman e os seus discípulos da escola de Chicago. Escola de Chicago estendida pela Europa, pela África, pela América Latina, especialmente pela União Europeia a concorrer com a união mais poderosa dos Estados Unidos de América. Mulher que cresce, queira, saiba ou não, dentro do pensamento até faz pouco, masculino apenas, do tecido social que fabricamos. Mulher a crescer e deitar culpas ao homem que a enclausurou, que a tivera reduzida a uma reprodutora dele e das crianças. Mulher que cresce sem o norte milenário do pensamento masculino, introduzido no seu pensar faz trinta anos, ou mais. Pensar que não tem tido outra prática que a de orientar o lar porta adentro. O homem a governar de portas afora. Fêmea crescida a presa, ao som da economia que faz dançar aos acordes, da conta bancária, dos juros, do carro a comprar, das joias a exibir caso for preciso, do preço do dinheiro, do valor do que sabe fazer e que aprendeu, de forma nova, dentro do seu grupo social. Mulher masculinizada em esta gestão a concorrer com as ideias patriarcais que agora também possui. Ideias a bater na antiga forma patriarcal Ocidental e Oriental. Mulheres a crescerem e mudarem de forma e maneira, que nós homens, e várias mulheres ainda, acabamos por as não entender como merecem. Nem eu, que tenho observado o caso e estudado com as já citadas autoras. Que, como pai e marido eu próprio, ficara sempre imbricado no meu entender cultural da vida, traído pela educação a nós transferida desde a infância. A nós. Os de todos os sexos e orientações. Filiação a dar origem a uma infância que percebe melhor por não ser geração de transição, como a nossa.

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