PRAÇA DA REVOLTA – Entrevista com Boaventura de Sousa Santos – 2

 

(Conclusão)

Para colmatar a crise há o crescimento de iniciativas de caridade. Como é que vê isso?

Não ponho em causa os valores éticos de quem faz isso. O que eu ponho em causa é o seu sentido político. Nós temos uma tradição, que vem desde o Salazar, de que o Estado não tem de se imiscuir nas questões sociais, porque Portugal é um país solidário de camponeses e católicos onde a filantropia preenche perfeitamente as deficiências do Estado. Foi assim que Portugal foi durante grande parte do século XX, quando os outros países do continente estavam a construir o Estado social. Portugal tem duas gerações de trabalhadores com Estado social.

 

Os netos deles são a geração à rasca. Não durou mais que duas gerações. A linguagem que está a ir para a comunicação social substitui o conceito de direito pela ideia de que estamos perante uma regalia que é um privilégio. É um deslize linguístico que captura a evolução dos tempos.

Disse-me que o nosso problema é o governo, mas também o Partido Socialista, que não rompe com este tipo de políticas. Acha que são precisos mais partidos ou estes bastam?

Estes bastam. É pública a minha intervenção no sentido de procurar uma aliança entre o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda. E a razão pela qual não incluo o PCP é porque ele não tem tomado uma posição europeísta. E eu estou convencido de que, na situação actual, para que não haja uma catástrofe, a solução tem de ser europeia. Se não for europeia, vai ser através de um empobrecimento drástico da população. O PCP tem estado arredio de propostas inovadoras para a Europa. Não é o caso do PS e do BE. O problema é que estas esquerdas têm um passado que é muito mais forte, muitas vezes, que o seu futuro e que tem tornado essas soluções muito difíceis. Neste momento, eu acho que vai haver mudanças. O PS é o produto da desertificação da esquerda.

 

Penso que o Partido Socialista tem líderes em gestação para assumir uma alternativa.

Mas, até agora, o PS e o PSD não têm protagonizado a gestão de uma espécie de centrão dos interesses ?

Assim é. Mas este tipo de política do PS não tem futuro. Está vinculada às políticas da chamada Terceira Via, que nada mais fizeram do que a gestão neoliberal: uma espécie de capitalismo com rosto humano que nunca teve. É preciso um Partido Socialista com outro líder, não pode ser este. Não tenho nada pessoalmente contra este, mas são precisas pessoas que não tenham sido criadas nesta zona de conforto, com imaginação, para soluções de desobediência. É preciso ter carisma, ter organizações fortes e a capacidade de pensar o impensável. Só assim se faz uma política de renovação.

O facto de não haver alternativas políticas evidentes a estas políticas não está a esvaziar a democracia?

Isto é claro, até de um ponto de vista simbólico. Até aos anos 80, o Ministério das Finanças não tinha qualquer relevância na organização do governo. Os ministérios mais importantes eram Educação, Saúde, Trabalho e políticas sociais. A partir dos anos 80 começa a ganhar importância o Ministério das Finanças. Os parlamentos perdem poder em relação aos executivos. É uma política, apoiada em todo o mundo pelo Banco Mundial e o FMI, de concentração de poderes nos executivos, com elites mais dóceis, menos sujeitas ao caos da deliberação política pluralista. O esvaziamento faz-se fundamentalmente pela manipulação do medo. O neoliberalismo assenta na polarização social e na manipulação do medo. Todos estes governos – e aí os Estados Unidos foram a linha da frente que vemos nos outros países –, todos os Estados têm promovido políticas através das quais justificam o baixar os critérios de legalidade e de defesa dos direitos humanos. Desde os anos 50, elas foram três: a primeira foi a luta contra o comunismo, que permitiu abandonar o primado do direito. Medidas de segurança em vez de penas. Torturas e assassínios. Quando a luta contra o comunismo termina entra a luta contra o terrorismo, que é mais um mecanismo através do qual se pode baixar o critério da legalidade. Veja-se o caso de Guantánamo, que não é só naquele lugar. E em muitos países e partes do mundo soma-se a guerra contra a droga, que permite formas globais de dominação que assentam na manipulação do medo. É a criação de cidadãos assustados que querem câmaras de vigilância, mais polícias e mais prisões. Não é gente que quer arriscar democraticamente, com uma cidadania activa e novas ideias.

O professor foi um dos pioneiros dos Fóruns Sociais Mundiais. Como vê o surgimento dos movimentos de desobedientes em muitas cidades do planeta?

É uma mudança e um grande desafio ao Fórum Social Mundial, assim como a todas as correntes progressistas do mundo. Por uma razão simples: toda a prática de mobilização política assentou na ideia de que há uma sociedade civil organizada e uma sociedade civil não organizada. Durante muito tempo, a parte mais importante dessa dinâmica foi protagonizada pelos partidos. A partir do ano 2000, o Fórum Social vem dizer que não são os partidos, mas também os movimentos sociais que têm um papel fundamental na dinâmica das sociedades. Esse processo fez-se afirmando a nível global que há outras formas de organização política que devem ter voz para além dos partidos. Só que nos esquecemos de que a esmagadora maioria dos cidadãos não é membro dos partidos nem dos movimentos sociais. É a isso que na teoria política, de esquerda ou de direita, se chamou sociedade civil despolitizada, porque desorganizada. Nem os sindicatos nem os partidos cuidaram da maioria dessas pessoas. Verifica-se agora que esta parte da sociedade começou a mobilizar-se. Muita gente que não tinha até agora arranjado motivos de mobilização começou a encontrá-los. É uma alteração, será uma alternativa? Vamos ver.

Este Observatório sobre Crises e Alternativas e o dicionário que editaram cumprem que papel?

Fundamentalmente, pretende lutar contra o pensamento único. O Centro de Estudos Sociais é um local de produção de conhecimento de excelência, conhecido por fazer análises empíricas sólidas da sociedade portuguesa na área da justiça, saúde e social. Pensamos que era muito importante nesta altura de crise dar a conhecer alternativas e outras formas de pensar que não se enquadram nesse pensamento único. O observatório visa mostrar alternativas. E não falamos de grandes rupturas ou revoluções. Nós não temos certezas suficientes para criar sociologicamente as condições que foram historicamente as da revolução. Nós temos condições para a rebeldia, mas não para a revolução.

Esta crise a que assistimos era inevitável?

Nenhuma crise é inevitável. As crises acontecem. Podemos dizer, em termos muito teóricos e abstractos, que as crises são inevitáveis no capitalismo – já o velho Marx dizia que o capitalismo é um modo de produção que avança por via das suas contradições, que podem produzir crises de vários tipos. E, normalmente, há muito sofrimento humano, muita destruição criativa, como defendia o Shumpeter, para passar a uma outra superação dessas crises. Obviamente que isto é uma leitura que dá a entender o capitalismo como eterno. Uma outra leitura que vem dessa tradição, mas é diferente, da teoria do sistema mundial de Wallerstein é no sentido de que, se as crises forem sobrepostas – as crises de longa duração, as crises cíclicas, as dos ciclos de Kondratiev –, então podemos estar perante um colapso do sistema. É isso que a teoria do sistema tem vindo a avançar, sem grande êxito. Normalmente, estas teorias exigem pressupor o que vem depois, o que é muito difícil de saber. São teorias que afirmam que um país, um grupo de países ou uma região domina em cada momento o mundo, e não tem sido fácil prever que países vão ser no futuro. Nos anos 80 dizia-se que era o Japão. Depois, o Japão colapsou ou, pelo menos, estagnou. Agora é a China. Há quem pense que, eventualmente, o próximo sistema mundial não terá uma potência hegemónica, embora nada indique que assim seja. A crise em Portugal, nesta altura e neste momento, a nível de uma análise empírica de baixo alcance, era absolutamente evitável a nível do sistema em que a gente vive. Vão sempre surgir crises.

A crise portuguesa decorre dessa crise mais geral do capitalismo ou tem outras paternidades?

Ela é, fundamentalmente, uma crise do capitalismo europeu através das escolhas que foram feitas, sobretudo a partir do Tratado de Maastricht, a partir de dois grandes mecanismos que fizeram com que os países menos desenvolvidos começassem a colapsar. Os dois mecanismos foram a abertura aos mercados mundiais e o euro, desenhado por um alemão, funcionário da Goldman Sachs, os grandes homens que definiram a Europa dos nossos dias, e fundamentalmente desenhado para a Alemanha, que se podia facilmente defender da economia chinesa. Estes dois factores fazem com que países como a Grécia, Portugal, Espanha, e parcialmente a Itália e a Irlanda, começassem a sentir os défices comerciais que foram alimentados pela dívida para obter esta sustentabilidade insustentável do aumento da dívida soberana. Um aspecto curioso é que este sistema tem tanta confiança que não concebe uma ideia de crise. Nos tratados não estão previstos mecanismos de saída e as situações de emergência, as derrogações dos tratados em caso de emergência nacional, como tem o tratado da Organização Mundial do Comércio ou outros tratados internacionais. Para o pensamento dominante seria sempre uma soma positiva que era boa para todos.

 

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