Com o nosso pensamento e as nossas preocupações demasiado eurocentradas temos estado, nos últimos tempos, focalizados nas eleições em França e na Grécia. Que, sem dúvida, o justificam. Mas neste mês de Junho, exactamente a 16 e 17, vamos ter também a segunda volta das presidenciais no Egipto, que terão uma influência decisiva neste país, mas também a nível regional nos mundos árabe e islâmico, onde se fizeram e fazem ainda sentir os efeitos das chamadas “revoluções árabes”, porque o resultado destas eleições será um indício dos desfechos dessas revoluções. Mas não deixarão também de se reflectir na dimensão global e, muito particularmente, no nosso espaço europeu, pela proximidade geográfica, pelos reflexos na conflitualidade endémica numa região vizinha e pela importância das comunidades islâmicas residentes em países da União Europeia. Acresce que o Egipto tem enorme importância no mundo árabe, demograficamente, culturalmente, militarmente, geoestrategicamente.
Os resultados da primeira volta revelaram uma distribuição muito equilibrada pelos quatro candidatos mais votados e deixou alguma perplexidade por, além do já esperado candidato da Irmandade Muçulmana e do Partido Justiça e Liberdade Mohammed Mursi, ter passado à segunda volta, com uma votação muito próxima do primeiro de perto dos cinco e meio milhões de votos, o candidato do Conselho Supremo das Forças Armadas e ele próprio um militar, o general Ahmed Shafiq que foi o primeiro-ministro do último governo do deposto Mubarak. Como explicar que, numa altura em que o ex-presidente egípcio é condenado a prisão perpétua – pena que acabará por ser simbólica, pois significará a passagem numa cama de hospital do pouco tempo de vida que lhe resta –, o seu chefe de governo possa vir a ser eleito seu sucessor? O presidente era o único responsável num regime ditatorial e corrupto que o povo derrubou? Ou o presidente foi apenas julgado pelo passado imediato da repressão na Praça Tahrir, saindo incólume do julgamento o próprio regime do qual, aliás, já se tinham oportunamente demarcado os chefes militares que com ele colaboraram durante décadas?
A situação no Egipto é muito complexa e, no essencial, dominado por dois protagonistas, o movimento islamita e os militares.
Os islamitas, que em conjunto já haviam ganho por larga maioria as eleições legislativas, dos quais se destacam o Partido Liberdade e Justiça da Irmandade Muçulmana e os salafitas de Ayman Nour, não constituem uma força homogénea e mesmo a Irmandade Muçulmana está dividida por um fosso geracional, de um lado os conservadores, mais institucionais, do outro os modernistas, mais implantados nas classes médias urbanas, partidários de uma inflexão democrática mais próxima – mas não coincidente – de modelos ocidentais.
Os militares, esses são poder desde sempre, desde que o golpe militar de 1952 derrubou a monarquia de Farouk, clientelar da Grã-Bretanha. A República Egípcia só conheceu presidentes militares e a instituição militar, do tipo conscrição, numa ambiguidade um tanto paradoxal, tem alguma proximidade com o povo mas foi também a garantia da estabilidade do antigo regime, e tem uma implantação social que vai para além da função militar, pois controla uma rede empresarial muito vasta, diversificada e com peso na economia do país. E há compromissos externos. Desde 1979, quando da assinatura do Acordo de Paz com Israel em Camp David sob o patrocínio dos EUA, as forças armadas egípcias beneficiam de maciça ajuda norte-americana, a segunda maior depois de Israel.
A verdade é que os militares, até certo ponto, se apropriaram da movimentação da Praça Tahrir e foi uma junta de generais que assegurou a transição. A dúvida é se terá também assegurado a manutenção da presidência pós-transição.
As revoluções árabes estão a ser uma dor de cabeça para os ocidentais e para Israel, nomeadamente para os EUA, que claramente já esmoreceram os seus entusiasmos iniciais, porque as transições e as eleições têm revelado a força dos partidos e movimentos islamitas e mesmo a influência de facções jihadistas radicais. No caso particular do Egipto torna-se óbvio que esse predomínio só poderá ser compensado através dos militares, ou por um entendimento, que alguns analistas consideram provável e a única saída, entre militares e islamitas. A pergunta que se pode colocar é que militares – os generais ou quadros intermédios menos comprometidos com o passado, e que islamitas – conservadores ou modernistas?
De qualquer forma o movimento popular da praça Tahrir parece recear que lhe tenham “empalmado a revolução”. É um problema das chamadas revoluções sem líder, susceptíveis de caírem nas mãos de grupos mais organizados que espreitam as suas oportunidades. A eleição do candidato militar, que levantará muitas desconfianças, poderá fazer regressar a rua, como parece estar a verificar-se face ao insólito resultado da primeira volta. E se a resposta for a repressão armada, a saída pelo compromisso entre militares e Irmandade Muçulmana pode cair por terra.
À margem, apenas uma nota final. Grécia e Egipto, dois dos maiores depositários da História ocidental e mediterrânica, que até a partilharam em comum no período helénico, voltam a estar no centro das atenções mais de dois milénios depois. Este mundo-planeta-terra, para além da sua rotação diária, dá muitas voltas!…