A situação geral no Médio Oriente mudou, e muito, desde o início do século XXI.
Mudou, e para pior, apesar de continuar a falar-se, de forma cada vez mais leviana e com uma trágica irresponsabilidade, nos caminhos que estão a traçar-se para construir a paz na região.
“Primavera Árabe”, “alvorada da democracia”, revoluções coloridas e floridas são alguns dos conceitos românticos e anestesiadores com que são apresentadas nas parangonas dos jornais, nos prime-times de rádios e TV’s mais influentes de todo o mundo as mudanças que acontecem no Mundo Árabe e na Ásia Central. Politólogos, opinion makers, analistas “de referência” garantem em coro afinado que está a despontar uma era pautada pelos princípios democráticos.
A diferença entre esta encenação propagandística, que beneficia da instantaneidade e da globalização da imagem, sons e palavras de que Goebbels não pode usufruir, e a realidade no terreno é o prenúncio de uma imensa tragédia que parece cada vez mais difícil de travar.
O Médio Oriente deixou de estar em fogo lento. Está em chamas e os pirómanos militares, económicos, políticos e mediáticos responsáveis por este sacrifício metódico de vidas humanas que está em curso na mais delicada região do planeta não se cansam de atear incêndios que a prazo serão incapazes de dominar e poderão queimá-los a eles e, por tabela, a todos nós. Muitas são as criaturas que, como aconteceu com recorrência nas últimas décadas, não tardarão a virar-se contra os criadores.
Cada caso, cada acontecimento no Médio Oriente tem a sua especificidade; as suas interligações formam uma teia de malha apertadíssima, um labirinto irresolúvel; a resultante é um monstro de muitas cabeças e lucidez humanista praticamente nula.
PALESTINA
Há quem continue a falar, burocraticamente, no processo de paz do Médio Oriente, essa coisa efémera que foi real até que um fundamentalista judaico matou o seu primeiro ministro, no já longínquo Outono de 2004. Tudo o que se passou depois disso foi a corrupção contínua da génese do movimento. Hoje resume-se a causa do fracasso, com o descaramento da ignorância e a perversidade da má fé, ao facto de os palestinianos não quererem negociar porque os israelitas insistem na colonização. Como se fosse um capricho.
Bastarão escassos minutos de navegação pela internet através de um comum motor de busca para se perceber, desde que a cabeça esteja livre de preconceitos, que a colonização israelita de Jerusalém Leste e da Cisjordânia liquida qualquer negociação. Não é preciso ir em busca das Convenções de Genebra, onde é evidente a ilegalidade da colonização – tanto a israelita na Palestina como a turca no Chipre, como a marroquina no Saara Ocidental; não é essencial seguir os caminhos tortuosos e vergonhosos do muro do apartheid que Israel construiu (e constrói) na Cisjordânia metodologia bem mais eficaz e humilhante ainda do que a segregação praticada pelos racistas sul-africanos. Basta perceber que cada colonato criado ou ampliado em Jerusalém Leste ou na Cisjordânia é mais um passo na ocupação gradual desses territórios onde, segundo é assumido pela chamada “comunidade internacional”, um dia deveria ser declarada a independência do Estado da Palestina. Um colonato não é apenas uma agregado populacional, uma aldeia ou uma cidade; é uma estrutura com os seus próprios circuitos de estradas, de água, de energia, de produção vedados aos palestinianos. Quando mesmo assim as autoridades de Telavive têm dúvidas de que as garantias dadas pela implantação sejam suficientes instalam o exército e contratam-se milícias a multinacionais privadas de segurança, os novos intérpretes da privatização da guerra e das forças policiais.
Se um dia, por absurdo, israelitas e palestinianos chegarem a um acordo de paz, pelo caminho que as coisas seguem actualmente já não haverá território onde criar qualquer Estado da Palestina. Obama, Barroso, Clinton, Merkel, os petromonarcas da Arábia e os neo-otomanos de Ancara, os figurantes do “Quarteto para a Paz” presididos por um doutorado em trapaça política chamado Blair sabem-no muito bem.
Com a paciência forjada numa luta de quase sete décadas, os palestinianos enviaram recentemente uma carta a Netanyahu manifestando, ainda e mais uma vez, a disponibilidade para negociar os seis pontos ainda por resolver entre as duas partes. O primeiro ministro de Israel respondeu negativamente, contrariando na prática o que afirma cada vez que sobe publicamente a um púlpito e se coloca atrás do microfone.
Vamos começando, entretanto, a receber novos sinais de que o povo palestiniano, o povo das duas Intifadas, se sente de mãos livres para travar novas batalhas cívicas e humanistas capazes de passar por cima dos cúmplices de Israel e chegar aos povos do mundo em busca de solidariedade, como no início dos anos noventa e deste século. Tivemos notícias da penosa, heroica e vitoriosa greve da fome de dois mil presos políticos palestinianos nas masmorras israelitas. Outros sinais iremos perceber em breve. Será impróprio, como é insultuoso, comparar os levantamentos palestinianos com aquilo que baptizaram como “Primavera Árabe”. Iniciaram-se antes e vão prosseguir depois de esses movimentos, alguns deles com genuína génese popular, terem sido completamente empalmados pelas manigâncias militares, políticas e incendiárias dos donos do mundo.
A Palestina é e continuará a ser a questão central do Médio Oriente. Sem uma solução justa para o exercício dos direitos integrais do povo palestiniano não haverá paz na região. Por isso, os sinais de resistência e luta que nos chegam da Palestina são provavelmente os únicos indícios de esperança que iremos acolher e aos quais será fundamental corresponder para travar a derrapagem de toda uma região para uma tragédia que contaminará o mundo inteiro.
(Continua)