CARTA DE VENEZA – 11 – por Sílvio Castro

 

“A VERTIGEM SEM FIM NA POESIA DE MARLY DE OLIVEIRA”
Parte  I

 

A vertigem sem fim é aquela que mesmo depois de sua morte permanece à leitura dos poemas vividos por Marly de Oliveira. Neles, na expressiva maioria deles, a vertigem não é somente a delicada e fascinante citação de João Cabral de Melo Neto

  

  “Penso como João Cabral:
    tanta lucidez dá vertigem,”
         

(Vertigem, 1.)

 

para nela ser mais: tudo aquilo que passa pelos seus poemas, desde aqueles do inaugural  Cerco da Primavera, de 1958, até o último, possivelmente ainda inédito. Vertigem como intensa e racional partecipação com as emoções, sem temor de qualquer voragem. A vontade como guia da expressão sentimental e o confronto da razão com todos os movimentos provocados pela dimensão incontida da comoção mais vertical. A partir dessa coragem poética, aparentemente incontida, mas sempre servida de objetiva consciência intelectual, ela sempre construiu o seu poema. Poema nascido de permanente coerência pessoal voltada para uma visão predominantemente pessimista da existência, desde uma dimensão penetrada do profundo ser feminino

 

    “Às margens do Mondego fui Inês,
    morri e fui rainha
    de um modo que só eu sei.”

   (Viagem a Portugal, 11.)

 

até a tomada de consciência da vida pela ação a mais livre da vontade, como vem traduzido pelo intenso poema-19 da série aparentemente circunstancial de Viagem em Portugal:

 

    “Já quiseram os deuses que tivesse
    penhor bastante dando-me da vida
    o desentendimento e absurdo dela,
    em vez da fruição e da alegria,
    que ilude quanto mais nos desobriga
    de buscar-lhe um sentido, um alvo, um porto,
    onde chegar após a longa viagem,
    tanto mais longa quanto mais absorto
    aos perigos de si tão numerosos,
    os que forjam o medo e a vontade
    decidida a escapar-lhe. Sem fortuna,
    no entanto, pois mais forte
    se faz sempre o poder que rege tudo.”

 

O moderno e profundo universo feminino dos poemas de Marly de Oliveira, desde aqueles aparentemente presos em predominância à intuição, até aqueles outros conduzidos racionalmente pela dicção própria de uma vontade ativa, faz dela uma das mais significativas vozes da poesia brasileira contemporânea, ao mesmo tempo que comprova como a “Geração de ‘56” da nossa modernidade literária – na qual ela se insere em modo significativo – seja, entre as três que formam a mesma modernidade histórica, aquela que mais se enriqueceu de poetas-mulheres. A 1ª Geração modernista, a fundadora, de 1922-30, ainda se apresenta com uma quase absoluta predominância masculina, ainda que a poesia de Cecília Meireles seja suficiente para dela dar uma nova e possível dimensão própria do nascente universo da mulher brasileira moderna. A muito importante 2ª Geração modernista, a de ‘45, não soube alargar, senão esporadicamente, esta perspectiva. A Geração de ’56, sendo a que, em geral, o maior número de poetas apresenta entre as três, se afirma igualmente pelo elevado contingente de poetisas de nível altamente expressivo . Assim nela, ao lado de Marly de Oliveira, entre outros, devem ser mencionados criadore como: Lélia Coelho Frota, Hilda Hilst, Renata Pallotini, Ruth Maria Chaves, Lupe Cotrim Garaude, Maria Ângela Alvim, Olga Savary, Astrid Cabral, Celina Ferreira, Yone Rodrigues (Cf. sobre essa ampla e outras questões relacionadas com a nossa revolução lírica novecentista o meu estudo “O modernismo em poesia”, in Sílvio Castro, História da Literatura Brasileira, 3vv., Lisboa, 2000, vol. III, cap. 45, pp. 183-304).

Quando em 1958 Marly de Oliveira publica o seu primeiro livro de poesia, Cerco da Primavera, logo se afirma como um expressivo representante da nova geração, sucessora emodernista de 1922. A jovem poetisa imprime de imediato aos seus poemas aquela visão concreta do mundo e da existência, de forte intensidade cultural, servida por uma renovada consciência da dimensão linguística, valores compreendidos entre os muitos apanágios da “Geração de ‘56”. A mais, a jovem Marly de Oliveira demonstra já a posse de uma erudição poética que se alargaria com crescente riqueza nos seus livros posteriores, uso da erudição, principalmente derivada da formação e prática universitárias, que se identificava com uma das linhas presentes no quadro próprio daquela que è a última geração da modernidade poética nacional e antecipadora da atual linha pós-moderna.

 

Naturalmente ainda muito visíveis são os ecos de outras fontes, mas quase sempre ecos destinados a serem somente referências formadoras da poética e da linguagem da autora. Assim se pode ver a profunda afinidade com a lição lírica de Cecília Meireles. Porém, esses traços de afinidade e adesão, além de representarem a partecipação que toda a sua Geração afirma em relação aos mestres de 22-30, traduzem igualmente a formação de Marly de Oliveira tendente a exaltar a tradição romântica recebida pela filtragem de modernização derivada do simbolismo. Bom exemplo disso é o belo poema poema “Retrato”:

 

    “Deixei em vagos espelhos
    a face múltipla e vária,
    mas a que ninguém conhece
    essa é a face necessária.

    Escuto quando me falam,
    de alma longe e rosto liso,
    e os lábios vão sustentando
    indiferentes sorriso.

    A força heróica do sonho
    me empurra a distantes mares,
    e estou sempre navegandol
    por caminhos singulares.

    Inquiri o mundo, as nuvens
    o que existe e não existe,
    mas, por detrás das mudanças,
    permaneço a mesma, e triste.”

 

(continua)

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