MUNDO CÃO – OS PIRÓMANOS E A CAIXA DE PANDORA NO MÉDIO ORIENTE-2

EGIPTO

 

O mais populoso país árabe e o único que tem um acordo de paz com Israel vive uma perigosa situação de indefinição. Quando parecia que a experiente Irmandade Muçulmana iria assumir todas as rédeas do poder depois dos resultados das eleições parlamentares, a consulta para eleição do presidente revelou uma sociedade tripartida entre os confessionalistas, os que apostam na estrutura do antigo regime sob a tutela dos militares e os que se revêem no neo-nasserismo e nos tempos de uma afirmação plena, independente e com referências sociais do regime de Gamal Abdel Nasser, depois corrompido por Anwar Sadat e Mubarak.

 

Um eventual domínio político do Egipto pela Irmandade Muçulmana é uma incógnita. A organização não é homogénea, pode ainda ter de recorrer a alianças pontuais com os radicais salafitas com grande presença no Parlamento, mas assumirá, aí sem qualquer dúvida, a transição do laicismo do Estado para o confessionalismo islâmico e provável aplicação da sharia, a lei islâmica. Os próprios militares qualificam estas eventuais alterações como um “regresso à Idade Média”, fraseologia propagandística de índole eleitoralista mas que tem resquícios de verdade em termos de cultura, educação, direitos das mulheres e das minorias religiosas. Um regime islamita coexistindo com um exército formalmente leal do ponto de vista institucional mas na realidade impreparado para aceitar esse papel indicia um Egipto instável e imprevisível.

 

Os Estados Unidos têm mantido contactos com a Irmandade Muçulmana, organização que beneficiou ainda da “ajuda” das agências governamentais e entidades “não governamentais” norte-americanas especializadas em “ensinar” a democracia através do mundo; Washington prefere, contudo, os militares, o aparelho através do qual investiram e investem o seu esforço de controlo sobre o comportamento internacional e regional do país, principalmente nas relações com Israel – à custa dos direitos dos palestinianos.

Das grandes jornadas populares da Praça Tahrir já pouco resta; e as que eventualmente se sigam provavelmente acabarão em banhos de sangue a pretexto de salvaguardar a nova “legitimidade democrática”.

A estabilidade no Egipto não chegará certamente com a eleição do presidente. A dicotomia político-militar não ficará resolvida, tanto mais que Washington fará questão de estar por detrás da componente castrense. A indefinição, por outro lado, está associada ao desenvolvimento dos acontecimentos na vizinha Síria.

SÍRIA E LÍBANO

 

A situação na Síria é, no momento, o principal foco de incêndio, o lugar de acção preferido dos pirómanos.
A desestabilização selvagem na Síria não é apenas o passo seguinte da mudança de regime imposta na Líbia à sombra da chamada “Primavera Árabe”; tem como objectivo instaurar em Damasco um regime da confiança de Washington, de Israel, da NATO, das potências dominantes na União Europeia para forçar uma alteração de forças qualitativa no Médio Oriente e garantir um acesso sem restrições às principais fontes de petróleo e gás natural do mundo. A palavra “democracia” aparece envolvida em todo este processo mas sejamos claros: desde as primeiras genuínas manifestações populares por mudanças políticas na Síria já ninguém leva a sério a questão da “democracia”. O rei vai nu.

 

A Síria não é um país petrolífero mas funciona como um tampão ao controlo do eixo Washington-Telavive sobre todo o Médio Oriente. Não está sintonizado com aliados estratégicos dos Estados Unidos como a Turquia e a Arábia Saudita, mantém-se fiel às reivindicações territoriais sobre as zonas ocupadas por Israel, tem fortes laços sobretudo económicos com potências emergentes como a Rússia e a China e é um obstáculo à vulnerabilidade total do Irão.

 

A instalação de um regime dócil em Damasco seria ouro sobre azul para todos os sectores que se desmultiplicam em combater o regime de Damasco – agora denunciado como aquilo que sempre foi, autoritário, mas com o qual as grandes potências foram mantendo relações não muito exuberantes mas sempre convenientes – recorrendo a uma repugnante e sanguinária devastação humana, social e económica.
Depois da embalagem inicial incentivada e sustentada pelos resultados da guerra na Líbia, os estrategos da NATO acabaram por perceber as diferenças e travaram às quatro rodas em termos de envolvimento directo. Não apenas porque o aparelho militar sírio tem uma envergadura e uma preparação mais evidentes mas também porque a Rússia e a China explicaram diplomaticamente o que não queriam no terreno – o que lhes valeu serem mimoseados com o léxico bafiento da guerra fria restaurados dos arquivos, alguns deles se calhar ainda por informatizar.

 

Quando a NATO suspendeu os preparativos iniciais para a invasão já existia no terreno uma organização criada e trainada na Turquia, o Exército Sírio da Liberdade, uma coisa que deveria ser o braço armado do Conselho Nacional Sírio, a “oposição” para a qual são encaminhados os apoios internacionais encomendados pelos Estados Unidos, embora seja uma “oposição” bastante mais conhecida em Paris e Londres do que na Síria, desconhecida aliás da autêntica oposição interna. Até aqui o paralelismo em relação à Líbia foi total, de tal modo que Abdelhakim Beliaj, irmão de armas de Bin Laden na al-Qaida e nas guerras do Afeganistão, agora entronizado como governador militar de Tripoli, capital líbia, se tornou também o coordenador militar do tal Exército Sírio da Liberdade.

 

Em vez da invasão pela NATO, Washington e os estrategos internos e externos aos seus serviços optaram por uma injecção na Síria de grupos de mercenários islâmicos armados através das fronteiras da Turquia, do Líbano e também da Jordânia. Esses soldados da fortuna e do salafismo têm combatido em guerra atrás de guerra, ora ao lado da NATO ora contra a NATO, alguns ainda no Afeganistão, na Bósnia, no Kosovo outros no Iraque, no Líbano, na Líbia, no Iémen, na Argélia; são especialistas em atentados, como aliás foi evidenciado em numerosos edifícios públicos da Síria, implacáveis com as populações em nome dos dogmáticos princípios religiosos interpretados dos modos mais extremistas, o que, portanto, não os faz recuar na possibilidade de utilizarem escudos humanos contra os objectivos que querem levar de vencida.

 

As ligações destes grupos são múltiplas, mas a própria secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, reconheceu durante o período em que Washington recuou na perspectiva da intervenção militar que entre as forças da “oposição” associadas ao Exército Sírio da Liberdade, na verdade um monstro acéfalo do ponto de vista operacional, estão grupos ligados à al-Qaida ou aparentados. Também já não é segredo de que pelo menos há cinco anos Israel e a Arábia Saudita convergem no apoio à Irmandade Muçulmana na Síria.

 

Apesar disso, e como recentemente reconheceu o jornal Washington Post, os Estados Unidos fornecem armas, apoio logístico e financeiro à “oposição” armada síria através da Turquia, do Qatar e da Arábia Saudita, os seus aliados directos nesta operação dita de implantação da democracia. Não há no mundo quem ignore quão democráticos são a Arábia Saudita e o Qatar através dos seus regimes confessionais de aplicação estrita da lei islâmica. Falar em “democratização” da Síria neste cenário é um insulto aos valores democráticos, continuamente espezinhados desde o austeritarismo na Europa às “primaveras árabes” patrocinadas por ditaduras e aparentadas. Não esqueçamos que, apesar da fachada democrática, os dirigentes neo-otomanos de Ancara continuam rejeitar os elementares direitos nacionais da comunidade curda no país.

 

Acresce dizer que todos os testemunhos independentes na Síria revelam que, por um lado, as manifestações cívicas da oposição foram abafadas manu militari pelos grupos salafitas e que a guerra está longe de se estender a todo o país, onde mesmo comunidades e sectores políticos que não se identificam com o regime de Damasco receiam muito mais os novos “libertadores”.

 

A degradação da situação na Síria tem a sua equivalente no vizinho e pequeno Líbano, onde grupos sunitas manobrados pelo ex-primeiro ministro Hariri, que tem igualmente nacionalidade saudita, continuam a contribuir para a desagregação nacional através da criação de zonas dedicadas ao apoio aos grupos armados que actuam em território sírio, como acontece na região norte.

 

(Continua)

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