Um funcionário – conto de Vicente Blasco Ibáñez – (tradução de António Gomes Marques) – III

Um Café na Internet

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(continuação)

 

O «funcionário» ia-se animando em consideração da atenção benévola e curiosa que Yáñez lhe prestava. Ia ganhando confiança: cada vez falava com mais desembaraço.

 

 

 

— Tenho também o meu pouquinho de inventor — continuou. — Os apetrechos fabrico-os eu próprio e, quanto a limpeza, basta pedir… Quer o senhor vê-los?

 

 

O jornalista saltou da cama, como disposto a fugir.

 

 

— Não; muito obrigado. Acredito em si.

 

 

E olhava com repugnância aquelas mãos, cujas palmas eram rosadas e gordurosas. Talvez restos da recente limpeza de que falava; mas a Yáñez pareciam-lhe impregnadas de gordura humana, do proveito daquela centena que formava a «sua lista».

 

 

— E está satisfeito com a sua profissão? — perguntou para o fazer esquecer o desejo de fazer sobressair as suas invenções.

 

 

— Que remédio!… Temos de nos conformar. O meu único consolo é que cada vez se trabalha menos. Mas, quão duro é este pão!… Se o tivesse sabido!…

 

E ficou silencioso, olhando o chão.

 

— Todos contra mim! — continuou. — Eu vi muitas comédias, sabe o senhor? Vi que certos reis antigos iam a todo o lado levando atrás o seu executor da justiça, vestido de vermelho, com a tocha ao pescoço, e faziam dele seu amigo e conselheiro. Aquilo era lógico! O encarregado de cumprir a justiça parece-me que é alguém e merece alguma consideração. Mas nestes tempos tudo são hipocrisias. Grita o fiscal pedindo uma cabeça em nome de não sei quantas coisas respeitáveis, e a todos parece bem; chego eu depois para cumprir as suas ordens e cospem-me e insultam-me. Diga, senhor: é justo isto?… Se entro numa hospedaria, põem-me à porta logo que me conhecem; na rua todos recusam o meu contacto, e até no Tribunal me atiram o salário aos pés, como se eu não fosse o mesmo funcionário que eles, como se o meu salário não fizesse parte do orçamento… Todos contra mim! E depois — acrescentou com uma voz apenas perceptível — os outros inimigos…, os outros!, sabe o senhor?, os que se foram para não regressar e, não obstante, regressam; essa centena de infelizes a quem tratei com mimos de pai, fazendo-lhes o menor dano possível, e que…, ingratos!, vêm até mim logo que me vêem só.

 

— O quê!… Regressam?

 

 

— Todas as noites. Há os que me molestam pouco: os últimos, apenas; parecem-me amigos de quem me despedi ontem; mas os antigos, os da minha primeira época, quando ainda me emocionava e me sentia rude, esses são verdadeiros demónios, que, apenas me vêem sozinho na escuridão, desfilam sobre o meu peito em interminável procissão, oprimem-me, asfixiam-me, roçando-me os olhos com a orla das suas vestes de condenados à morte. Seguem-me para todo o lado, e assim como vou envelhecendo são mais assíduos. Quando me meteram no desvão comecei a vê-los a aparecer pelos cantos mais escuros. Por isso pedia um médico: estava doente; tinha medo durante a noite; queria luz, companhia.

 

— E está sempre sozinho?

 

— Não; tenho família além na minha casita nos arredores de Barcelona; uma família que não dá desgostos: um cão, três gatos e oito galinhas. Não entendem as pessoas, e por isso respeitam-me, gostam de mim, como se eu fosse um homem igual aos demais. Envelhecem tranquilamente a meu lado. Nunca me ocorreu matar uma galinha: desmaio ao ver correr o sangue.

 

E dizia isto com a mesma voz lamuriante de antes, débil, abatido, como se sentisse a lenta queda do seu interior.

 

— E nunca teve família?

 

— Eu?… Como todo o mundo! Ao senhor conto tudo, cavalheiro. Há tanto tempo que não falo!… A minha mulher morreu há seis anos. Não julgue o senhor que era uma dessas mulherzinhas borrachonas e embrutecidas, que é o papel que nos romances se reserva sempre para a fêmea do verdugo. Era uma moça da minha aldeia, com quem casei ao regressar do serviço militar. Tivemos um filho e uma filha; pão, pouco; miséria, muita; e, que quer o senhor?, a juventude e certa brutalidade de carácter levaram-me ao ofício. Não creia que consegui facilmente o lugar: até necessitei de influências. No início achava graça ao ódio da população; sentia-me orgulhoso por inspirar terror e repugnância. Prestei o meu serviço em muitos Tribunais, rodámos por meia Espanha, e os meninos cada vez mais formosos; até que, por fim, caímos em Barcelona. Que grande época! A melhor da minha vida: em cinco ou seis anos não houve trabalho. As minhas poupanças converteram-se numa casinha nos arredores, e os vizinhos apreciavam Dom Nicomedes, um senhor simpático empregado no Tribunal. O rapaz, um anjo de Deus, trabalhador, de boas maneiras e calado, estava numa casa de comércio; a rapariga (quanto sinto não ter aqui a sua fotografia!), a rapariga, que era um serafim, com uns grandes olhos azuis e uma trança ruiva grossa como o meu braço e que, quando andava pela nossa hortinha, parecia uma dessas senhorinhas que aparecem nas óperas, não ia a Barcelona com a sua mãe sem que algum jovem viesse atrás de si. Teve um noivo formal: um bom moço que rapidamente iria ser médico. Coisas dela e da sua mãe; eu fingia não ver nada, com essa bondosa cegueira dos pais, que se reservam para o último momento. Mas, Senhor, como éramos felizes!  

 

(continua)

 

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