Portugal atravessa uma crise de liderança no poder que, receio bem, possa trazer de regresso uma das nossas mais negativas idiossincrasias enquanto povo, que é o sebastianismo, a espera do desejado, a fé num salvador da pátria. Com um presidente da República que espera – espera que o desemprego diminua, espera que as forças políticas e sociais se entendam, espera que os juros da dívida baixem, espera que o compromisso da dívida se cumpra, espera que a economia recupere, espera que os sacrifícios dos portugueses tenham atingido o limite – mas de quem os portugueses já nada esperam porque abdicou de exercer os seus poderes para além da retórica, com governantes descredibilizados pelos seus próprios actos e palavras e tornados meros executores de decisões alheias, recorrentemente surgem na ribalta nomes de personalidades a quem são atribuídos méritos que nunca justificaram.
Nos últimos tempos lá veio mais uma vez o nome de António Borges que, instintivamente, me traz à memória a inesquecível figura emblemática do Pacheco, que através de Fradique Mendes a ironia inigualável de Eça de Queiroz criou como paradigma do nosso quotidiano. Lembremo-nos que, através do Pacheco, Eça deu nome ao português que, desde os bancos da faculdade, foi apontado como modelo de virtudes, saberes e competências, de “um imenso talento”, em suma, perante o qual todos se vergavam. Porquê, ninguém explicava. Com que resultados, ninguém descobriu.
A verdade é que Pacheco, através de uma inata e imparável dinâmica ascendente, foi tudo no país do seu tempo como teria sido tudo no Portugal do nosso tempo, gestor de grandes empresas capitalistas e financeiras (obviamente), conselheiro de Estado, dirigente partidário, deputado, ministro, presidente do Conselho de Ministros. Mas quanto a obra feita, zero. Grandes discursos um vazio, ideias mobilizadoras desconhecem-se, livros publicados nem um, de projectos inovadores não há registo. Pacheco limitava-se a fixar o olhar atrás dos seus “óculos a faiscar” (as imagens de Eça são geniais), espetava um dedo, franzia a enorme testa que se ia tornando cada vez maior com a idade até ocupar a cabeça inteira, esboçava um sorriso, inclinava a cabeça, cruzava os braços e deixava cair um lugar-comum. E as pessoas subjugadas exclamavam aaahhh! Não se esforçava por produzir nada, porque o sucesso vinha ter com ele. Os seus pares temiam a sua ira, o Zé Povinho idolatrava-o como figura inatingível lá no apogeu da sua fama. Portugal e os portugueses é que não lucraram nada com as poses, com os silêncios, com a aurea do Pacheco.
Eça terá tido, seguramente, na sua época, várias figuras públicas que lhe inspiraram os traços com que pintou a figura do Pacheco. Se tivéssemos a ventura de ter o Eça hoje, também não lhe escasseariam modelos para construir o Pacheco do Século XXI. O nosso grande romancista escreveu que “Portugal todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco”, para salientar que a marca do Pacheco está por todo o lado. Mas também poderia ter escrito que Portugal está repleto de Pachecos. Hoje, como ontem, eles andam por aí, enchem os corredores do poder, os salões e as salas de conferências dos conselhos de administração. E entre eles lá está, disponível para todos os sacrifícios que dele a pátria exija, António Borges.
O pior é quando os Pachecos resolvem sair do seu mutismo esfíngico e abrir a boca. Então o “imenso talento” dos Pachecos vem à tona e o mito desmorona-se. Aqui está, porventura, a nossa oportunidade. Obrigá-los a virem a campo, a falarem, a revelarem a sua vacuidade. Quando descem dos seus pedestais não resistem ao mínimo confronto com a realidade.
Já agora, parafraseando outro irónico polemista, “morte aos Pachecos, Pum!”
11 de Junho 2012