“A VERTIGEM SEM FIM NA POESIA DE MARLY DE OLIVEIRA”
Parte II
Porém, com o proseguir da conquista melhor da linguagem poética, tais linhas
amaducerão em clara progressão, transformando-se em expressão absolutamente pessoal, em concomitância com a assumida posse dos mais amplos instrumentos de criação poética, como pode-se constantar nos tercêtos que fazem o poema-20 do livro de 1986, Retrato:
“A máquina do mundo para mim
jamais se abriu e nem eu desdenhara
o que seria oferto em forma rara.
eu que, se posso, sempre sim
ao mistério, à esperança, à fonte antiga
de onde emana o que tem e não tem fim.
E por mais que me aflija ou que persiga
a sombra vã de Góngora ou Quevedo
não se torna por isso mais amiga,
nem o sono mais leve, nem mais ledo
esse estar sem saber tecendo aqui
a trama de que eu mesma tenho medo.”
O amplo, mas ainda algo vagante, quadro lírico do livro de estréia logo em seguida, com os dois sucessivos, Explicação de Narciso, de 1960, e A Suave Pantera, de 1962, se transforma numa voz indiscutível, voz essa extravasada em particular pela liberação de uma plena consciência do mundo e da existência, de endereço fortemente sensorial. A ação dos sentidos como revelação da coisas e dos sentimentos mais profundos faz-se então corpo de uma já intensa tradução da vertigem enquanto valor de filosofia de vida. Isto, ainda que em ambos os volumes, estreitamente relacionados, mas autônomos, não se alargue a vertigem até o limite da voragem, permanecendo – e com expressivos resultados – no plano de uma razão predominantemente especulativa.
A integração da autora numa livre forma de linguagem onírica, tendente a apresentar-se como forte inovação da criação erótica do lirismo feminino brasileiro, erotismo diretamente tradutor da consciência dos valores da sensualidade mais profunda, modificada pela capacidade de criação de uma escritura que a contenha e bem a traduza, conformam os dois volumes de poemas. Numa verdadeira conquista de modernidade lírica, Marly de Oliveira conduz então o erotismo feminino a dimensões poéticas que se alargam nos planos mais conotativos da metalinguagem
“[…. …)
Dizem que o cristal das águas
era teu rosto prateado,
e julgam que teu segredo
já foi todo desvendado.
Mas eu sei que outros desígnios
te dobraram sobre ti,
e obedeceste a uma lei
que não tem princípio ou fim.”
(Explicação de Narciso, 1.)
“Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
– em silência e lisura –
a força do seu mal,
e a doçura, a docura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera”
(A Suave Pantera, 1.)
O conhecimento do mundo e da existência, mais que procurado, revelado através dos sentidos num insólito canto do sentimeno do amor sem fronteiras convencionais, fazem dos dois livros, Cerco da Primavera e A Suave Pantera,” principalmente este, pontos salientes da tradução lírica da mulher brasileira moderna. Neles a poetisa convive com a magia da beleza física que a gratifica e, ao mesmo tempo, lhe pesa como um muro. Desse muro ela projeta sua visão das coisas, ampla e convincente, mas igualmente fonte de uma perdurável “tristitia” existencial. É quanto se pode deduzir de muitas de suas criações poéticas, como na forte síntese de raízes ungarettianas (um dos mestres da autora enquanto jovem) presente em um dos seus livros mais próximos à poética pós-moderna, A Força da Paixão, de 1982, e mais precisamente no poema monolíneo (penso agora às lições de teoria do verso de Cassiano Ricardo), nº 8.
“Viver é irreparável.”
“tristeza” que ela declarará em maneira mais explícita em tantas outras ocasiões líricas:
“Não, eu não sou feliz,
mas è preciso escondê-lo.
[… …]”
(Viagem a Portugal, 18.)
Depois da experiência iniciática traduzida em A Suave Pantera, livro ligado à minha experiência de editor com o Anuário da Literatura Brasileira, quando publico em 1962 o belo livro de Marly de Oliveira, com uma capa de Benjamim Silva, de forte impacto plástico, numa coleção de poesia que propunha igualmente modernas renovações gráficas, depois desse marco, a autora alarga a sua fascinante poética da vertigem aos pontos radicais da voragem consciente e criadora. Assim acontece em O Sangue na Veia (1967), em A Vida Natural, igualmente de 1967, em Aliança (1980), para culminar com os poemas de Retrato (1986), Viagem a Portugal, de 1986, e O Banquete (1988). Em cada um desses volumes, a capacidade de expressão de Marly de Oliveira atinge novas e constantes metas, numa como linguagem do dito e do não dito, mas sempre em consonância com aquele outro que receberá a mensagem poética. Como vem diretamente traduzido no poema 8. de O Banquete:
“A magia que há no real
e os tigres do irracional
não desdizem, conjugam
(conjugar lembra casal),
alimentam a ponta extrema
da plenitude desse ato
que é tentar o mais exato,
o mais pobre dos poemas.”