O Pedrolo – Eva Cruz

 

 

 

Eva Cruz  O Pedrolo

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(Adão Cruz)

 

 

 

   Chamava-se Pedro.

 

Naquele tempo, nas aldeias, raramente a pessoa era chamada pelo próprio nome. Todos tinham uma alcunha que, de tão sugestiva, revelava o humor inteligente do povo. Pedro era um tanto atabalhoado no andar e no falar. Pedrolo assentava–lhe melhor do que o nome de baptismo.

 

Era muito rude, rudo, como se dizia na aldeia. Na escola havia rudos e rudas que se mantinham por lá alguns anos, sendo a chacota dos mais novos que os ultrapassavam rapidamente nas letras e nas contas. Os miúdos gozavam com o Pedrolo, a quem  se irigiam constantemente com ares de provocação:

 

Senhor Pedro que letra é esta?

 

Comparado com as outras crianças, o Pedrolo era grande de mais para a escola. Um dia, o professor tinha escrito no quadro a palavra e, ironicamente, ordenou-lhe que lesse.

 

– Senhor Pedro, leia a palavra.

 

Com muito custo, o Pedrolo leu.

 

– Tire-lhe o til e leia agora.

 

– Sapo, disse prontamente o Senhor Pedro.

 

– Diga lá, senhor Pedro, que letra é esta? Repita.

 

– Diga lá, senhor Pedro que letra é esta? repetiu ele, a medo.

 

O Pedrolo tinha um enorme talento para imitar qualquer música, arrancando da harmónica de beiços, já enferrujada e amolgada, aquilo que queria. O mesmo acontecia com o fado sem saber uma letra das letras. Com a harmónica, ou apenas com a boca e os dedos entrelaçados a seu jeito, produzia sons e compunha melodias que iam aquecendo o silêncio dos caminhos nas noites de Inverno, ou refrescando o ar das noites quentes de Verão.

 

Quando descia o Caminho Novo, já pelo alto da noite, essa música feita de boca e dedos, ora bizarra, ora melódica, criava, com a ajuda do tenor dos sapos e barítono de ralos e grilos a nostálgica sinfonia do Velho Mundo. Por vezes, não se sabe por que batuta de invisível maestro, entrava de mansinho a voz dos clarinetes do Zé da gaita que vinha do fundo da aldeia, e do João, que vinha do lado do rio, quando ambos ensaiavam em casa para tocar nas festas e no coreto.

 

O Pedrolo respondia-lhes subindo o tom da sua música alternativa, assim fugindo ao mainstream. E a aldeia adormecia.

 

O Pedrolo casou com a filha de uma mulher de má vida, mas gabava-se de a ter levado purinha ao altar.

 

Morreu muito novo, a noite era de breu, os caminhos tortuosos, os copitos a mais e a camioneta não o viu. E, assim, com estrondo, se calaram para sempre os últimos acordes dessa sinfonia do Velho Mundo.

 

O Bininho, seu amigo, corcunda e atrasado, acompanhou-o no enterro, com a sua respeitada função de homem da campainha e  da caldeirinha da água benta, missão que não delegava em ninguém, mesmo quando cambaleava com o vinhito.

 

Puxou da harmónica de beiços do amigo e, com os olhos vermelhos e húmidos de lágrimas, começou a tocar no funeral para espanto de todos. Tal irreverência nunca se vira ou ouvira. Mesmo vinda de um tolo, ninguém teve coragem de o mandar calar.

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