Selecção, tradução e introdução por Júlio Marques Mota
Porque é que a contracção orçamental está condenada a falhar? – II
George Irvin
(continuação)
A situação dos alemães e dos anglo-saxónicos
É útil utilizar a igualdade de equilíbrio acima exposta para poder pensar sobre as experiências de diferentes países. Por exemplo, os casos alemão e americano são semelhantes num certo sentido — ambos voltaram à situação de crescimento económico, enquanto os salários reais permanecem em depressão — mas são completamente diferentes um do outro num outro sentido— os EUA tem um défice comercial enorme, enquanto a Alemanha tem um grande excedente.
Como é geralmente conhecido, muito antes da grande recessão de 2008, nos EUA (como no Reino Unido) a poupança privada interna foi insuficiente — na verdade, em muitas famílias a poupança passou a ser negativa pelo lado dos trabalhadores — enquanto os salários reais estagnaram desde há décadas — e procurou-se manter os consumos por recurso ao crédito barato. Simultaneamente, os EUA tiveram um elevado défice externo que foi em grande parte financiado pelas economias asiáticas, enquanto o Reino Unido teve um bem mais pequeno défice da balança comercial parcialmente financiado pelas entradas de capital estrangeiro.
No mundo anglo-saxónico as contas públicas estavam numa situação negativa muito antes já da recessão; não é somente o resgate financeiro dos bancos que explica o elevado ratio da dívida pública/PIB no mundo anglo-saxónico.
Nos EUA, em vez de se cortar drasticamente nas despesas públicas — o que poderia ser chamado da estratégia de “Tea Party” — a administração dos EUA tentou escapar à recessão através da aplicação de um pacote de estímulos económicos. [3] Os economistas podem discordar sobre se o estímulo foi suficientemente grande ou não, mas pelo menos a economia dos EUA parece estar a crescer novamente — em contraste com o Reino Unido, que adoptou a abordagem aplicada na Europa, a Austeridade Europeia».
Alemanha
A Alemanha entrou em recessão em 2008 como força motriz da Europa, e apesar do nível de produção ter descido durante algum tempo, o crescimento dinamizado pelas exportações permitiu que a economia recuperasse. O crescimento foi conseguido à base das exportações em parte devido à forte disciplina salarial que restringe a expansão da procura interna e em parte porque o euro manteve as suas exportações mais competitivas do que teria sido o caso sob o regime do Deustche Mark. Há dois anos, no entanto, a grande coligação sob o controle de Merkel adoptou a lei do «travão da dívida», que torna o equilíbrio orçamental sobre o ciclo económico juridicamente vinculativo.
Olhando para a identidade que nos dá a relação entre as situações líquidas das três contas acima definidas ficamos com uma visão importante sobre a razão pela qual o “travão da dívida” tem sido possível na Alemanha. Tendo em conta que (S – I) no lado esquerdo e que (X – M) do lado direito são na Alemanha ambos positivos, a igualdade abaixo que relaciona as três situações líquidas permite afirmar que o valor de (T – G) pode ser zero (ou mesmo ligeiramente positivo) com determinado nível de produção e do emprego. Isto, claro, não poderia ser o caso, se o valor (X – M) fosse negativo — na realidade, o travão da dívida constitucional obriga a Alemanha à manutenção do seu modelo de crescimento através das exportações.
(S – I) = – (T – G) + (X – M)
O resto da Europa
Por extensão, deve ser evidente que o travão da dívida da Alemanha não pode ser bom (ou até mesmo viável) para o resto da União Europeia, e é por esta razão que que ‘a contracção orçamental’, exigindo que todos os Estados-Membros adoptem uma lei semelhante, é tão vigorosamente contestada pelo PS francês. Porquê? Por três razões: em primeiro lugar, as exportações da Alemanha para a União Europeia são (por definição) as importações de outros Estados-Membro. Em segundo lugar, mesmo que todos os Estados-Membros se tenham podido tornar exportadores líquidos para o resto do mundo, há insuficiente procura agregada na economia mundial para absorver as exportações adicionais. [4] Em terceiro lugar, a abordagem do travão da dívida ignora totalmente o endividamento privado; ou seja, a natureza super-alavancada do sector bancário.
Com excepção do caso grego, a irresponsabilidade orçamental “não pode ser culpada pela crise da dívida da União Europeia As finanças públicas da Irlanda estavam em boa forma antes da crise, mas o seu sector bancário privado tinha uma importante divida — que o governo garantiu em 2008 para salvar o sector financeiro o que levou a que o rácio da dívida pública passasse para dois dígitos de uma só vez. O problema da Espanha é ou tem a mesma razão de ser: uma enorme bolha imobiliária privada sobrecarrega os bancos privados, particularmente as caixas de aforro.
O défice público de Portugal em 2008 era apenas de 3,7% do PIB, enquanto o ratio da dívida da Itália/PIB, tradicionalmente muito elevada, não tinha aumentado desde há uma década, enquanto o seu sector privado estava praticamente sem dívidas. Mas em todos estes casos, a recessão de 2008 levou a que o PIB caísse o que, por definição, fez aumentar a relação dívida pública/PIB. Como Richard Koo argumentou num importante texto, a redução das despesas públicas num altura em que o sector privado está a tentar reconstruir as suas contas torna as coisas ainda piores, e nunca não melhores.
Keynes Revisitado
As identidades das contas nacionais acima estabelecidas não são keynesianas em si mesmas. O mais importante argumento keynesiano para o nosso objectivo é o que foi posto em evidência em 1944 na Conferência de Bretton Woods. Keynes tentou e falhou em conseguir estabelecer um sistema de pagamentos internacional baseado numa moeda de negociação em separado (bancor), e igualmente, também porque Keynes encarara um FMI que não teria apenas o poder de impor condições aos países em situação de défice externo, mas também àqueles, como a Alemanha e a China de hoje- que têm tido grandes excedentes externos.
Subjacente à crise financeira da dívida pública e privada da Europa está uma crise da balança de pagamentos. O mercado não conseguiu canalizar os excedentes comerciais em fluxos de capital para a periferia e com a finalidade de aumentar os seus investimentos de modo a aumentar a produtividade nos correspondentes sectores de bens e serviços exportáveis — e mais do que o que foi feito na década de 1920 e de 1930. Para resolver o problema crítico de desequilíbrios comerciais, a União Europeia deveria exigir instituições muito mais fortes. A Europa precisa quer de crescimento quer de comércio externo equilibrado. Uma precipitada e doentia austeridade orçamental que imponha a redução da actividade económica não é certamente a resposta —-nem para esses países da União Europeia sob uma crescente pressão dos mercados financeiros, nem a longo prazo para a própria Alemanha.
[1] An excellent short rebuttal is to be found in a recent speech by Lord Skidelsky to the Lords: see http://www.theyworkforyou.com/lords/?id=2012-04-25a.1834.4&s=speaker%3A13463#g1840.0
[2] To keep things simple I shall not derive the above identity from first principles—a derivation can be found in any basic macro textbook. Nor shall I consider budget balancing mechanisms ‘over the cycle’.
[3] This was Obama’s $878bn package in 2009. See Christina Romer’s paper (2011) at: http://elsa.berkeley.edu/~cromer/Written%20Version%20of%20Effects%20of%20Fiscal%20Policy.pdf
[4] See Whyte, P (2010) ‘Why Germany Is Not a Model for the Eurozone’, London: Centre for European Reform. Also see Marin, D., (2010) Germany’s super competitiveness: A helping hand from Eastern Europe. VoxEU.org. http://www.voxeu.org/index.php?q=node/5212