CARTA DE VENEZA – 14 – por Sílvio Castro

 

“Ezra Pound e Veneza”

Dentre as muitas agradáveis, e muitas vezes surpreendentes, revelações que Veneza oferece a quem com ela convive, principalmente se de modo estável, está também aquela de um encontro fascinante com a visão, que em algumas ocasiões pode transformar-se em precioso contato direto, de personagens internacionais famosos. Meus primeiros passos nas vias e praças venezianas foram logo movimentados por tais eventos.

 

Principalmente quando você se encontra a flanar pela Praça de San Marco, contemplando não só a múltipla arquitetura, mas igualmente curiosando sobre os momentâneos freguezes sentados nas cadeiras externas dos quatro grandes e antigos cafés, a beber um aperitivo ou provar uma taça de sorvetes, enquanto sentem distraidamente a música das pequenas orquestras que dão vida a cada um deles. Assim foi, me lembro claramente, numa certa manhã de setembro, no Café Florian, o mais antigo dos quatro, quando de repente diviso a figura admirada e amada de Charles Chaplin, acompanhado pela sua mulher, Ona O’ Neal, filha do teatrólogo estadunidense Eugene O’ Neal. Era ele certamente: o mesmo sorriso luminoso, a mesma face, quase os mesmos gestos que sempre me encantaram desde a minha infância. Passando lentamente na frente das cadeiras do casal, eu recuparava magicamente as facécias de Charlot, o inesquecível.

 

Porém, algumas vezes tais encontros se faziam encontros diretos e repetidos, como aquele que me acontece em relação a Ezra Pond que não se sentava nos cafés da Praça San Marco, mas vivia o sempre novo quotidiano veneziano.

 

Encontrar Ezra Pound em Veneza não era difícil, difícil era conseguir escutar a sua fala. Não que ele evitasse a presença dos admiradores da sua poesia ou do seu pensamento estético, mas porque o sempre enigmático personagem se fechara lentamente nos anos em um mais que simples silêncio, num mutismo imutável.

Veneza fez sempre parte de uma sua pessoal geografia. Em Veneza publicou o seu primeiro volume de poesia, em 1908. Foi uma edição financiada pelo autor – já desde então se preanunciava a vocação de editor de Pound – saída numa tiragem de 100 exemplares. Em seguida, diversos foram os reencontros entre o poeta e Veneza.

 

Porém, depois de muitas peripécias existenciais de domínio público, Pound retorna à sua cidade eletiva em 1958.

Era o ano de 1963 quando o encontro pela primeira vez em um dos bares ao aberto nos Zattere, de onde se pode contemplar o grande canal da Giudecca e ver as barcas que passam indolentes sob a luz veneziana. Não superaram o número de três os nossos encontros mudos. Então, na sequência de nossos diversos diálogos mudos, eu imaginava come me teria sentido privilegiado se, antes de 1957 – ainda que já então me empenhava com um pensamento ideológico oposto àquele que o poeta defendera por anos e anos – assim mesmo me teria podido unir aos intelectuais de todo o mundo que o tinham querido livre do manicômio criminal de St. Elizabeth, em Washington. 

 

A fotografia – da arquiteta veneziana Nicoletta Tonini – que guia este texto, de certa maneira ilumina a escolha poundiana de um mutismo dentro do mundo. Era o 15 de setembro – o mais bonito dos meses venezianos, feito de uma luz transparente que leva as coisas a assumir contornos definidos – do ano de 1971. Estamos na Igreja de San Giovanni e Paolo que, juntamente com a basílica de Santa Maria dei Frari, representa a arquitetura religiosa de Veneza associada à natureza de sedes da venezianidade.  Neles encontram-se sepultados muitos dos grandes doges da Serenissima Reppublica, junto a outros personagens, artistas, intelectuais, patriotas, guerreiros, distinguidos pela cidade com uma homenagem especial e definitiva. Pound e a sua companheira assistem aos funerais de Igor Stravinskiy, morto quase aos noventa anos em New York, mas que quis ser sepultado em Veneza, próximo à tomba de Sergey Diaghilev.

 

A fotografia da arquiteta veneziana é exemplar. O mutismo de Pound se abre somente à voz de sua companheira.

 

A luz ilumina o silêncio refletindo-se nos cabelos brancos de Pound, em contraste com as suas vestes. Os olhos semi-fechads e a luz fazem com que o poeta se encontre ali e em postos distantes. O seu grande cansaço apoia-se numa das colunas monumentais da basílica e então, para ele, é doce escutar a voz que lhe sussurra coisas apenas pressentidas, principalmente sobre as centenas de presenças que enchem o grande espaço religioso, mas que o irremovível silêncio mudo exclui da tomada fotográfica. Nesta aparecem somente esboçadas coisas apenas pressentidas, mas presentes: nas sombras, no alto; nas cadeiras apenas esboçadas, mas inteiras; no foulard da companheira, misto de luz-e-sombra que se alarga até o branco do papel do programa da cerimônia, como que abandonado na mão enluvada. Na composição em branco-e-preto da arquiteta-fotógrafo se sente a música que cobre os espaços e as alturas de San Giovanni e Paolo. Possivelmente é música de Stravinskij: as notas atonais das admiráveis “Três poesias japonesas“, de 1913, ou mais possivelmente o sublime “Canto fúnebre“ pela morte de Rimsky-Korsakov, de 1908. Mas, em verdade, será Vivaldi, o mesmo Vivaldi estudado e tantas vezes de novo revelado pelas investigações da musicóloga que foi a companheira.  Pound escuta os cantos e rememora tudo quanto o cerca naquele momento.
 

O féretro sai da igreja e se encaminha na direção do motoscafo fúnebre, ornamentado de penachos cortinas escuras matizadas de ouro, como numa pintura de Klimt. Assim como de ouro são decoradas as gôndolas, dezenas e dezenas, que acompanham o cortejo fúnebre. Os gondoleiros estão vestidos conforme a tradição da cerimônia. Pound e a sua companheira passam lentamente pela praça frontal ao Ospedale Civile com a sua fachada luminosa e renascentista, na qual  os relevos de leões se movem na matização dos mármores.  O motoscafo fúnebre parte e as gôndolas, seguindo o canal do Hospital, se encaminham na direção das Fondamente Nuove. O cortejo transita lentamente na direção do cemitério da ilha de San Michele. Passa diante da igreja de San Michele in Isola e se dirige na direção de um dos setores em que se divide o cemitério, o ortodoxo, logo depois de passado aquele católico e defronte, aquele protestante. Finalmente Stravinskij repousa próximo a Diaghilev.
 

Mudo, Ezra Pound abandona a ilha, a mesma na qual agora repousa no setor protestante, a partir daquele 3 de novembro de 1972, pouco mais de um ano depois de ter acompanhado o criador da “Sagração da Primavera“ e dois dias depois daquele sombrio e úmido 1° de novembro, quando se despediu para sempre de Veneza.

 

 

Leave a Reply