A BAHIA, JORGE AMADO E A CONDIÇÃO HUMANA – por Manuel Simões

Nenhum outro escritor brasileiro atingiu um prestígio tão elevado, quer no seu país quer no estrangeiro como Jorge Amado. Isto significa que o autor de “Gabriela, Cravo e Canela” soube construir, através da escritura, universos romanescos de grande sedução, precisamente pela capacidade de fundir elementos expressivos que provêm da pluralidade de componentes culturais da sociedade brasileira, do teatro das suas paixões apreendidas e mediadas através de uma travessia no conjunto das imagens do universo de referência.Ainda mais: com a obra literária amadiana alargam-se até os confins do país justamente porque ela se apresenta como o grande fresco da razão crítica que se assume enquanto compêndio dos valores universais.

 Nessa obra, de gigantescas dimensões, numa aparente heterogeneidade de pontos de vista, o autor persegue uma unidade de fundo, ainda que não transcure nenhuma via, transversal ou oblíqua, à volta de cada personagem: de Jubiabá a Antônio Balduino, de Gabriela a Dona Flor, de Tieta a Santa Bárbara/Yansã, sem esquecer o exemplo talvez mais paradigmático da sua narrativa –o fabuloso personagem Quincas Berro D’Água -, não obstante as diferentes perspectivas da narração, a isotopia dominante é sempre a da liberdade do homem relativamente a todas as formas de prepotência.

 Como se lê numa das suas obras: «Sonho uma revolução sem ideologia. (…) Não temos direito maior e mais inalienável do que o direito ao sonho, o único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar» (“O Menino Grapiúna”). Quer dizer que a função do escritor, além do mais assumida com paixão programática, foi sempre a de sugerir que o homem tem o dever de lutar por alguns primcípios irrenunciáveis, como a fruição do amor num espaço livre de contrições político-religiosas. Neste sentido a obra de Jorge Amado é atravessada por uma voz omnipresente como uma respiração palpitante de afecto; o seu “corpus” textual não é mais do que o reflexo de variações sucessivas sobre a dignidade da humana condição e sobre a legitimidade da esperança, no fundo a mola secreta que faz mover os personagens no grande teatro do imaginário amadiano.

 Falando de Jorge Amado e da sua obra não se pode deixar de falar da cidade de Bahia, daquele modelo de civilização da convivência de que o escritor se tornou o símbolo predilecto. E então nada melhor do que transcrever as próprias palavras do autor, escolhendo, entre os muitos momentos da sua inexausta criação, um segmento que é, por sua vez, uma síntese prodigiosa da cidade negra e mágica, espelho do mundo brasileiro e encruzilhada de culturas de diversa proveniência: os aspectos que, afinal, determinaram a matriz de uma sabedoria instintiva e a raiz de um sincretismo talvez único no mundo: «No regaço do golfo, na brisa da península, plantada na montanha, eleva-se a cidade de Bahia, de seu nome completo Cidade do Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, enaltecida por gregos e troianos, exaltada em prosa e verso, capital geral de África, situada no oriente do mundo, na rota das Índias e da China, no meridiano de Caribe, gorda de ouro e prata, perfumada de pimenta e alecrim, cor de cobre, flor da mulataria, porto do mistério, farol do entendimento» (“O Sumiço da Santa: Uma História de Feitiçaria”, Lisboa, Europa-América, 1989).

 Para além de monumento literário de reconhecida elevação – Jorge Amado é traduzido em todo o mundo, já a partir de 1936 -, a sua obra é também um documento onde se espelham os diversos aspectos e os diversos momentos de mais de meio século de história do Brasil – o primeiro romance, “O País do Carnaval”, é com efeito de 1931 –, de que o autor de “Cacao”, de “Suor” ou de “Tieta d’Agreste” foi, de qualquer modo, testemunha atentíssima e algumas vezes também protagonista.

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