PEQUENA CRÓNICA SOBRE FARO – 4. Por Júlio Marques Mota.

A Crise na vida das “Marias” do Mundo – II

(conclusão)

Lembro-me igualmente do 25 de Abril, lembro-me da exigência das multinacionais numa desvalorização do escudo em 15% para tornar o custo da mão-de-obra portuguesa equivalente ao de outras paragens com a ameaça de que se iriam embora, ameaça feita por volta de Março de 1973 ou mesmo 1974. Lembro-me da fuga das multinacionais de Portugal, o país que representava então a maquilhadora embrionária a ser testada para o mundo inteiro, dizia-se a produzir em regime de drawback, lembro-me das centenas de raparigas que de um dia para o outro ficaram na rua sem nada, sem emprego, sem dinheiro, sem futuro, com um presente a ser vivido no passeio como fonte provisória de rendimentos imediatos. Voltar para a terra, de mãos a abanar, assumidas como falhadas isso não. Também aqui, ninguém as queria, e o inferno eram os outros, e provisoriamente assim ficaram.

Mas como é evidente, as falhadas não eram elas. O seu desemprego era a resultante do modo de produção capitalista em Portugal, por razões do fascismo, estar completamente desajustado dos mecanismos da concorrência globalizada que já se faziam sentir. Veio a seguir a maquilhadora no México, veio depois a zona especial de exportação que foi a China, vieram outras zonas especiais e depois veio a crise brutal que nos assola agora. Mas isto são outras histórias. Fica aqui apenas o paralelo, dois sistemas, a queda da Rússia, a queda do Muro de Berlim, e a vinda do 25 de Abril, a queda do fascismo em Portugal, e o inferno são os outros é a verdade que se instala nas vítimas imediatas resultantes de cada uma das quedas.

Face a esta resposta da nossa emigrante russa disparo a pergunta seguinte, pergunto-lhe então o que é que fazia na Rússia?

Muita coisa, fui empresária, tive lojas, trabalhei com a polícia, fiz muita coisa. O meu marido morreu, passei a ser a base da família, veio a queda de Gorbatchov, tudo se tornou difícil. Emigrei para Espanha. Não gostei. Éramos vistos como escravos, nunca como pessoas. Vim para Portugal, gostei, fiquei.

Hoje trabalho numa clínica em Albufeira. Vim a Faro trazer análises a uma clínica. Não percebo. Vir de Albufeira aqui. Economicamente não percebe o vosso sistema de saúde.

Fica-me no ar o sentido apurado que ela tem quanto ao sistema de saúde, fica-me também presente o termo polícia, fica-me no ar o seu aspecto e o seu andar fisicamente desenvolto. Claramente andar de militar, postura toda ela de militar.

Fala de família. Veio  então com a família?

Não. Já viveram comigo. Tenho dois netos. Com o primeiro na escola primária em Portugal vi que não aprenderia nada de jeito. O segundo neto, mais novo, iria depois pelo mesmo caminho. Ficaria com dois ignorantes. Disse à minha filha que pagava tudo mas queria-os na Rússia, não queria dois ignorantes em casa. Lembro-me do filme Os Lisboetas, de Sérgio Tréfaut, lembro-me  de uma cena em que na  praia uma emigrante comentava  e afirmava  que o pior que havia em Portugal era o nosso sistema de ensino.

Olha-me com serenidade. Estamos a chegar ao Hotel Eva, para as camionetas e para a sua viagem, estamos a chegar ao meu quiosque também para poder comprar os jornais. Tem uma cara que é só ternura e firmeza ao mesmo tempo, corpo direito como se estivesse a olhar para uma parada militar, o peito atirado para a frente, uns olhos que brilham como o sol a acompanhar a resposta que se segue: Quero que os meus netos quando chegarem à idade adulta tenham as ferramentas que lhes possibilitem serem capazes de enfrentar o mundo e de nele se situarem condignamente. Imagino-lhe os seus seios como duas fontes capazes de dar de beber ao mundo, a todos os nossos filhos e netos em situação de precariedade, vejo-lhe os braços fortes, com a força de quem pode carregar com os meninos deste mundo, sejam Jesus ou outros, vejo-lhes as mãos com a garra de quem o futuro dos nossos netos é capaz de embalar, vejo-lho o dedo indicador apontado para a frente, num ângulo de 45 graus como que a apontar entre o Céu e a  Terra, como que a situar-se entre o ter e o não ter, entre o ser e o não ser,  a dizer-me que hoje é essa sua missão, em frente pois.

Pergunto, por fim: e se não há camioneta?

De novo a segurança de quem se sente no seu caminho, a percorrer o seu presente e a caminho do seu futuro, de novo uma resposta para mim inesperada.

Se não houver camioneta, faço o redondo, faço a estrada.

Fixei-me na segurança daquela mulher, a Marechala. Fico-me com a certeza de que ninguém lhe fará mal, na boleia que pode ser pedida ou que lhe pode ser oferecida,  fico-me  com a certeza que ninguém será mesmo capaz de lhe fazer mal, mesmo que queira, tal é a vida, tal é a força  que se respira nos seus movimentos, nas suas palavras.

Quando acaba de falar, paro eu cheio de espanto, para ela, olho e veja-a então como uma Maria, a da Rússia, como uma Maria, a de Jerusalém, como uma Maria, a de West Side Story e sobretudo, mas sobretudo, vejo-a como a Maria de Fritz Lang em Metropolis, na cidade dos escravos, onde agora só há escravos ou senhores porque os outros, os poucos intermediários que existem, estes, só conhecem o caminho socialmente descendente.

Na Rússia ela quer os seus netos como senhores talvez de outro sistema certamente o que era bem explícito na crítica velada ao nosso sistema de saúde, disposta ela a todos os trabalhos que para isso forem necessários, porque cultiva a cultura e di-lo a um professor universitário que se sente num país onde as Universidades cultivam a ignorância e que por isso abandona o ensino antes do final do seu contrato face ao descalabro cultural a que estava a assistir e de que não queria ser cúmplice.

Mas a Maria, a da Rússia, ignora a crise ocidental, os mecanismos que a produzem e  que tudo arrasam, e hoje não sei se terá emprego, em Albufeira ou algures, se não lhe terão cortado nas remunerações, se o dinheiro a enviar passou a não ser suficiente para formar os seus netos,  jovens do futuro, se tudo se lhe tornou ou não ainda mais precário. Ela ignora a crise que é traçada e desenvolvida a partir das cidades onde se dinamiza a crise que as Marias algures combatem, nas Metropolis do mundo moderno e talvez não haja melhor descrição dessas cidades do que a dada pelo Financial Times a propósito de um dos centros mais importante onde se desenvolve a crise actual, o principado do Mónaco:

“ O principado do Mónaco pré-configura o mundo moderno onde há apenas duas classes: os proprietários de jactos e os que andam de autocarro. Quem não pertença a estas duas classes é suspeito e é susceptível de ser preso pela polícia. Há um polícia por cada 62 habitantes, e câmaras de vigilância por todo o lado a fim de que o Príncipe Albert – que tudo supervisiona à maneira de um senhor feudal- não seja incomodado. O barulho é o inimigo público nº 1 do Principado ainda mais que o socialismo”.

Mas a Maria, a da Rússia, ignora tudo isto, eu não, nós todos também não.

Este foi o texto que pensei enquanto se aguardava a entrada do rancho russo no espectáculo FolkFaro de ontem. O espectáculo acabou, regressei com a minha neta a casa. Passei pelo café onde me habituei a beber uma garrafa de água servida pelo empregado que é um promissor responsável de um restaurante de luxo mas que nunca há-de vir a sê-lo, o empregado a que me referi na Crónica nº 1 sobre Faro. Peço duas águas e ouço: “a minha patroa está aqui, não posso falar consigo, estou proibido. É o meu emprego, não há direito. Ordens da minha patroa”. Este é um exemplo da  precariedade de quem ganha 20 euros por cada dia e em que  trabalha  das 20 horas até às duas da manhã, num emprego assente num contrato de duração bem curta.

A Maria, a da Rússia, não sabe nada disto, da precariedade mais absoluta que se possa imaginar e num país que ela considerava como muito humano. Nós sabemo-lo.

A Troika, a crise, os Passos Coelhos, que são os verdadeiros servidores, os verdadeiros intermediários do poder das Metropolis modernas, bem se encarregam de conduzir esta precariedade ao nível do nunca pensável por ninguém, nem por nenhuma Maria isoladamente. São precisas muitas Marias mais, a da Rússia, claramente só por si não chega, são precisas todas ou quase todas as Marias do mundo para acabar com o desprezo por quem trabalha e por quem tem direito ao trabalho condignamente.

E é tudo.

Júlio Marques Mota

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