EM COMBATE – 196 – por José Brandão

6 de Fevereiro de 1972, Porto Amélia

Vista do barco uma baía linda, enorme e a cidade a subir a partir do cais. Fomos saindo do barco de olhos bem abertos e sentidos alerta à espera da guerra e de súbito uma recepção inesperada e ensurdecedora abateu-se sobre nós. Formando duas filas por onde nós teríamos que passar, grupos de homens sujos, roupas em farrapos, cabelos e barbas compridos, olhos esbugalhados e parecendo deitar sangue, gritavam e saltavam como loucos à nossa volta, abraçando-nos e chamando-nos checas. Eram os elementos que sobravam da 2730, companhia que íamos substituir. Madrugada seguinte, noite escura, os motores de dezenas de viaturas a aquecer pareciam chamar-nos e cada um de nós, de sacos às costas e arrastando as malas com uma mão, enquanto a outra se habituava ao peso da G-3, tentava encontrar a viatura que o levaria à guerra. Depois de quase um mês de barco viajávamos agora em camiões, o 1° dia sempre em alcatrão parecia desmentir tudo o que nos tinham dito, afinal não era assim tão mau. Mas ao chegarmos a Montepuêz onde pernoitámos, começámos a ter uma ideia mais real do que nos esperava. As conversas com os velhinhos de Montepuêz não nos auguravam nada de bom e fizeram com que a noite fosse mal dormida e os sonos muito agitados. Pelas 5 horas da manhã já estávamos novamente em andamento, agora já não havia alcatrão, antes uma picada muito estreita e em muito mau estado. Segunda noite em Nairoto, depois Moirito e na 4ª noite dormimos pela primeira vez na picada. Noite escura, o corpo bastante cansado, mas as histórias ouvidas em Montepuêz não saíam da minha cabeça, de repente tiros. Depois mais tiros. Tentei pegar na arma mas não a encontrei, pois estava deitado na cabine do camião e a arma ficara algures debaixo de um dos bancos. Quando por fim a consegui encontrar a guerra tinha acabado. Mais uma noite, desta vez em Nancatári e eis-nos finalmente a atravessar as Bananeiras, zona mítica de que já nos tinham falado como a mais perigosa antes de chegar a Mueda. Aqui, um grande ataque inesperado e diferente, tão diferente que apesar de todos os treinos em Portugal, ninguém nos tinha preparado para este. Um enxame de abelhas africanas que terá sido incomodado por alguma das nossas viaturas resolveu vingar-se e cada um fugiu como pode, os que não tiveram tempo chegaram a correr perigo de vida e foram evacuados de helicóptero para Mueda. Recompostos, seguiu a coluna enfrentando agora novas dificuldades, as chuvas tinham deixado a picada em péssimo estado, pelo que o avanço das viaturas era extremamente difícil.

Finalmente, as primeiras viaturas entraram em Mueda em 12 de Fevereiro de 1972 e as restantes no dia 13. À entrada uma grande placa de madeira dava-nos as boas-vindas

Publicado por António Silvestre

Heróis?!

Na guerra, o tempo não passa, pára. Receber cartas, jornais ou revistas, responder às missivas dos pais e namoradas, jogar cartas, beber, conversar, jogar à bola, ouvir música, tudo serve mas nada chega para obrigar o tempo a correr, especialmente quando se está no aquartelamento. Em Mueda, tornava-se terrível aguentar uma vida tão tensa, pela psicose do ataque iminente a que se estava sujeito, e ao mesmo tempo por uma existência que perdia sentido. Os comandantes sentiam a tensão vivida à sua volta. Havia que combater. Intensificavam-se as saídas de grupos de combate para o mato, uma das formas de aproveitar a agressividade que em certos momentos mais se apoderava dos soldados. Por outro lado, iniciaram-se os preparativos para organizar um festival de Natal. Falava-se na vinda de cantores e músicos. Uma operação de envergadura de apoio a uma coluna logística que vinda de Nampula e se destinava lá bem ao Norte – Mocimboa do Rovuma – deveria ser comandada pelo capitão desta companhia, a partir de Mueda. Mais de 50 viaturas, entre militares e civis, transportando abastecimentos e material diverso, com o empenhamento de mais de uma centena de homens. Á medida que os dias de Dezembro se iam sucedendo, a coluna aproximava-se de Mueda e por isso iniciavam-se os preparativos para a receber, e depois levá-la até ao seu destino. Estas colunas, eram o grande drama daqueles que passaram por Mueda e que nelas tinham de participar. Raramente conseguiam chegar ao destino e voltar com o mesmo número de homens que as iniciavam. As baixas, pelos ataques que sofriam ao longo das picadas, e principalmente, os efeitos das minas, antipessoais ou anticarros, marcavam quantos nelas participavam. A tensão vivida em Dezembro era reforçada pela realização desta coluna. Para o capitão, seria a primeira saída «a sério» para o mato. As interrogações acerca do que o esperava eram amenizadas com o conjunto de tarefas a que tinha de responder, desde a escolha dos homens que o acompanhariam, os materiais de guerra que importava levar, as viaturas militares necessárias, etc. etc.

1 Comment

  1. Se a coluna para Mocimboa do Rovuma a que se refere teve lugar nos finais de Dezembro de 1973 eu segui nela desde Nairoto até Mueda, pois era o comandante da escolta nesse percurso. Como ainda era “checa” (o meu Batalhão tinha chegado a Cabo Delgado em Outubro desse ano) não segui para Mocimboa, e fiquei em Mueda com o meu pessoal, aguardando o regresso da coluna, o que aconteceu passados oito dias. Fui furriel miliciano na 2ª C. Caç do B. Caç 4812/73, estacionada em Nairoto (cerca de 150 km a sul de Mueda, na picada Montepuez-Mueda), e com um pelotão destacado no aldeamento de Muirite, cerca de 40 km a sul de Nancatari.
    Ainda passei 4 meses no destacamento de Muirite, de Fevereiro a Junho de 1974, e estava lá quando a Frelimo fez explodir pela segunda vez a ponte sobre o rio Muirite, a pequena distância do aldeamento.
    Eu e o Batalhão regressámos a Portugal em finais de Dezembro de 1974, graças ao 25 de Abril.

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