SALAZAR E A I REPÚBLICA – 17 – por José Brandão

Para a maior parte dos novos caudilhos do Poder, era absolutamente igual ao litro que os «adesivos» fossem republicanos de fresca data, ou monárquicos da velha cepa. Mais eficazes em proclamar a República do alto da varanda da Câmara de Lisboa do que em mudar o Pais, pouco ou nada fizeram para contrariar esta evasão mimética dos oportunistas que aderiam à pressa e em grosso caudal aos seus partidos

A propósito da infinidade de adesões à República de ex-monárquicos, então alcunhados de adesivos, Fialho de Almeida falava sobre o assunto ainda com o novo regime sem o primeiro mês completado: «Dia e noite os Ministérios regurgitam de pretendentes, alegando os «serviços» que prestaram e os martírios atrozes que sofreram. Os memoriais são montanhas de papel; e, se todos os que alegam ter-se batido na Rotunda e vir sofrendo perseguições desde a revolta do Porto, realmente citassem factos verdadeiros, a lista dos defensores autênticos das intentonas republicanas daria talvez o dobro da população de Portugal.»

A espantosa prosa do terrível panfletário que flagelara impiedosamente a Monarquia desabava agora com igual virulência e imperdoável contemplação sobre as novas cabeças galardoadas do estreado regime: «Pela adesão em massa dos monárquicos ao novo regímen (e não há meio nenhum de a evitar), todas as roubalheiras e vícios da sua política passarão intactas para a República; e haverá que lhe juntar a cobiça feroz e a desesperada ambição dos republicanos, que se vai vendo não são melhores nem mais correctos que os seus antecessores.»

Fialho de Almeida entendia que num Pais, onde «o piolho é um símbolo, uma bandeira o farrapo, e um sistema de governo a mendicância», a pedinchice e o servilismo eram situações para bom proveito dos que estavam por cima: «A tradição do Terreiro do Paço em matéria de cargos públicos, desde que a malandragem politicante que na monarquia teve nome de rotativos bloquistas e outros vários apodos de quadrilha ali sentou cavernas, é que o Estado só deve apaparicar os que chiam, fazem e desfazem eleições, atacam ou defendem Ministérios, sendo todos os demais cidadãos simplesmente ovelhas ranhosas, chair a canon, matéria colectável…»

Para o escritor a explicação era simples de dar: «Há 75 anos que tudo em Portugal é resolvido e feito por políticos. E o resultado é este! Corrupção, ignorância, anarquia geral e marcado retrocesso em todas as representações da vida pública e privada.»

Raul Brandão, que intensamente sentiu a vida da República durante toda a sua trajectória, será outro dos grandes vultos da cultura portuguesa a verberar o aproveitamento leviano com que os dirigentes partidários abriram as portas aos apressados conversos à causa republicana. Para ele, o principal corretor deste engajamento «adesivista», foi Afonso Costa, que, sem rebuço nem pudor, acolhia «de braços abertos a pior escória dos partidos monárquicos – os que não tinham convicções e queriam continuar no gozo dos seus interesses.»

No ano 1 da vitoriosa Revolução; no primeiro dia da novel República, começavam a surgir os indícios de que o novo regime não iria ter a vida facilitada.

Enquanto as vozes de protesto iam desfiando os seus lamentos o governo tratava de se precaver para eventuais «necessidades» e em Maio de 1911 é criada a Guarda Nacional Republicana, força de segurança constituída por militares organizados num Corpo Especial de Tropas com funções policiais. A Guarda tem por missão principal a manutenção da ordem e da segurança públicas, em especial nas instalações e equipamentos considerados estratégicos e a sua acção desenvolveu-se, sobretudo, no policiamento das áreas rurais, sem prejuízo de se prever a sua passagem para comando militar em situação de guerra. Foi pensada para ser um dos esteios da defesa do regime republicano.

Ainda a propósito da Lei da Separação da Igreja do Estado, a 16 de Junho é a vez de ser apresentado em Lisboa o Memorial das Igrejas Protestantes:

«Exmº Sr. Ministro da Justiça: – Os abaixo assinados, representantes das diferentes igrejas cristãs evangélicas, vulgarmente chamadas protestantes, estabelecidas no território da República, tendo tomado conhecimento da Lei da Separação da Igreja do Estado, de 20 de Abril último, agradecem e folgam por tudo o que aquele diploma consigna a favor da liberdade de consciência, mas pedem licença para expor respeitosamente algumas dúvidas e dificuldades que o estudo da mesma lei lhes sugeriu, esperando de V. Ex.ª os necessários esclarecimentos e providências.

A doença de S. Ex.ª o Sr. Dr. Afonso Costa, que sentimos e cuja debelação temos pedido a Deus, fez, a par doutros obstáculos, que fossemos adiando este nosso agradecimento e exposição.

Como os prazos da lei se aproximam, julgamos não dever adiar por mais tempo este nosso memorial e por isso o passamos a fazer.

A lei visou evidentemente a estabelecer direitos iguais ou semelhantes para os crentes das diferentes confissões religiosas. Se, porém, alguns artigos não forem interpretados convenientemente, este fim, sem dúvida um dos mais belos da lei, não será atingido. Não queremos já referir-nos aos privilégios de que ainda fica gozando a Igreja Católica Romana, que entra na vigência da nova lei com milhares de templos construídos, com bens de alto valor, com recursos de toda a ordem, tudo cedido gratuitamente pelo Estado que ainda lhe garante seminários privilegiados e avultada subvenção, traduzida em pensões para o seu clero. Limitamo-nos a fazer referência aos seus direitos, que ficaram garantidos por a lei ter em vista principalmente a maneira de ser católica.

Impedida por todos os modos a nossa natural expansão e oprimidos por uma perseguição desleal, que não deixou que o país conhecesse os nossos princípios e a nossa organização, achamos natural que a lei em muitos pontos desconheça a nossa maneira de ser, mas estamos certos de que a intenção que presidiu à elaboração do decreto de 20 de Abril há-de ouvir as nossas razões e deixar tudo equitativamente esclarecido.

Vamos dar a V. Ex.ª uma ideia rápida da nossa organização.

As igrejas protestantes, tendo como único fundamento o Evangelho puro de Cristo, são essencialmente democráticas, chegando algumas a nem ter ministério organizado.

[…]

As igrejas protestantes lá fora vivem daquilo que livre, voluntária e directamente lhes dão ou legam os seus fiéis, sendo em regra gratuitos os actos cultuais. Nós não conhecemos essas mil maneiras de dar ou deixar dinheiro para as nossas igrejas, tais como: indulgências, dispensas, confissões, festas, missas, sufrágios, etc., de que a Igreja Romana usa e que a lei ainda lhe deixou como meio de adquirir. Pedimos o direito de doar e testar livre e directamente, visto não o termos podido fazer até agora e por isso quase não termos nem templos nem seminários ou outra qualquer propriedade.

Impedidas até agora de possuir templos próprios por falta de capacidade jurídica, as igrejas protestantes portuguesas que conseguiram reunir algum pequeno capital, edificaram-nos como sendo propriedades de particulares.

[…]

Apresentado em Lisboa, pela Comissão, para esse fim eleita, e abaixo assinada, aos 16 de Junho de 1911. A Comissão»

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