Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
O dogma neoliberal leva a Europa a ficar encostada contra a parede
Dominique Voynet, prefeito de Montreuil
| 14.03.12 | 10h16
Ver o site da Senhora Dominique Voynet, em: http://dominiquevoynet.eelv.fr/?s=le+dogme+n%C3%A9oliberal
Deveríamos considerar que para o debate europeu que pouco a pouco tem estado a surgir não nos devíamos inspirar nas velhas fórmulas, considerar a culpa do populismo face às críticas muito virulentas e ficar por aí. Porque é mesmo preciso ter bem a medida do que está a acontecer à frente dos nossos olhos: um estado soberano degradado e reduzido ao nível de um protectorado, está sob supervisão, sob tutela. Um povo é posto em minoria, desesperado pelas humilhações a que foi sujeito mas dominado por um governo que ele mesmo nem sequer escolheu e obrigado a submeter-se às suas decisões. Não há nenhuma alternativa à austeridade, é o que nos explicam.
Não há nenhuma alternativa: desde há trinta anos, esta é a fórmula mágica dos neoliberais. Eis pois onde nós estamos. Não deixámos, não largámos ainda o mundo fabricado pela “revolução conservadora” de Reagan e de Thatcher. Os seus herdeiros não abandonaram a partida. Eles estão mesmo mais agressivos do que nunca. O colapso causado pelo seu fanatismo e pela sua cegueira – menos poder para os Estados mais liberdade para os mercados – não os tornou nem mais modestos nem mais cautelosos A sua doutrina levou-nos a todos nós à derrota, mas eles agarram-se à ideia de que que não é a sua teoria que está errada, mas é sim a realidade que está errada.
Não haverá nenhuma dúvida que se amanhã chegasse ao poder alguém de entre os 27, alguém que fosse um novo Roosevelt, este exigiria profundas mudanças na tributação fiscal, nos mercados financeiros, no papel dos poderes públicos, e seria alguém que aos olhos dos poderes de agora passaria por um maluco ou, pior ainda, por um perigoso extremista. Os dirigentes europeus não renunciaram ao seu catecismo neoliberal. Em nome de que resultados? O desastre grego é bem eloquente: o paciente de quem se diz que o vão curar interroga-se ele e nós também se o medicamento com que o estão a tratar não é ele mortal .
E tudo isso, infelizmente, é organizado em nome da Europa. Esta sangria brutal e imbecil feita em nome do seu país, os gregos deverão aceitá-la em nome da solidariedade, sob pena de se assistir a um naufrágio em todo o continente, e é isto que lhes dizem. A austeridade ou o fim do euro. Será admissível que nos indignemos com esta chantagem, sem sermos acusados a seguir de “populismo”? Se o ideal da unidade europeia só passa a ser invocado para justificar as políticas rejeitadas pelos europeus, então, e escrevê-lo entristece-me mesmo muito, então esta Europa não é a minha.
Compreendo , obviamente, que os esforços dos meus amigos para me tranquilizarem: é de que não é a Europa que está em questão, mas sim os governos dos seus Estados-Membros, maioritariamente governados à direita, com a Alemanha e a França em mente. A Europa, dizem-me, não é o problema, mas sim a solução. E, depois, esta crise não é a primeira e os activistas europeus sabem bem que a Europa se constrói pelas crises e pelas respostas que a Europa a estas crises opõe. Uma tentativa tão audaciosa como esta de estar a construir os “Estados Unidos da Europa”; de cultivar a paz depois de séculos de conflito e de ódio em solo europeu; de construir um espaço político supranacional, onde as decisões envolvendo o futuro de um continente levam bem mais longe do que a visão curta das nações ; nada de tudo isto pode ser feito num dia. . .
Sim, é claro. Mas um não pode (para) silenciar as suas dúvidas indefinidamente. Não podemos negligenciar a importância do que aconteceu nos últimos meses: na Grécia, um chefe de governo foi levado a sair do governo pelos seus homólogos europeus apenas por ter encarado a hipótese de consultar os seus concidadãos por referendo. Na Itália, Berlusconi foi demitido do cargo por insistência dos mercados. Eu fiquei satisfeito com a sua partida mas, é claro, eu não posso ignorar que se suspendeu, neste momento, o direito de um povo de escolher os seus líderes. Será necessário amanhã habituarmo-nos a que os funcionários eleitos sejam demitidos se estes não agradam aos bancos, aos especuladores e aos peritos financeiros? Ainda uma vez mais, tenhamos bem a medida de tudo isto e interroguemo-nos se, sim ou não, se tudo isto tem ainda a ver com a ideia que temos da Democracia e da Europa.
“SIM, O DESAFIO DA ESQUERDA de 2005 FALHOU”
Votei em 2005 a Constituição Europeia, apesar de partilhar muitas das críticas feitas contra este Tratado. Preocupada em conseguir progressos, como nós andávamos a dizer, eu estava céptica sobre a ideia de uma vaga que teria permitido uma vitória do “não” para renegociar em bases melhores”. Os factos estão aí, puros e duros: o ‘não’ ganhou sem que com isso se perturbe milagrosamente as relações de força na Europa, já muito favoráveis para os liberais. Aí, a aposta falhou. Mas a honestidade exige admitir-se que a aposta do ” sim da esquerda ” tenha falhado também. Onde nós esperávamos uma etapa suplementar na integração e na solidariedade da Comunidade, a aliança da burocracia e da Finança tem limitado a Europa à sua dimensão estreitamente instrumental: fazer a Europa, mas somente ao serviço de orçamentos equilibrados, da redução de expansão da intervenção pública e da expansão dos mercados.
Não se trata de subestimar as “boas notícias” das últimas semanas. Mais de 100 mil milhões na reestruturação da dívida grega, isso não é nada (alguns estão até mesmo a ficarem preocupados com o destino dos bancos forçados a “perdoar”, a entregar, uma parte dos seus créditos , esquecendo-se assim e um pouco rapidamente que eles bancos devem o seu próprio resgate financeiro, há apenas dois anos, à intervenção maciça dos Estados). Acontece que mesmo essa tentativa de uma tal “solidariedade” não pode justificar a estratégia suicida posta em prática , que o economista americano Paul Krugman resumiu numa fórmula simples: “pain without gain.”, “o sofrimento sem recompensa .” Empurrar a Europa no dogma da austeridade, sem esperança de poder escapar dele.
E será necessário, porque nós somos profundamente europeus, ficarmos satisfeitos com isso? A inventar razões para nos tranquilizar a nós próprios, dizendo que a situação poderia ser pior, ou que é impossível fazer melhor no momento? A fazer, basicamente, o mesmo que fazemos há tanto tempo, como se não tivéssemos aprendido nada com as derrotas, e nestas incluindo a de 2005? Quando a Irlanda rejeitou por referendo o Tratado Constitucional, não fiquei muito orgulhosa, como uma democrata e como europeia, que a única solução proposta fosse então… a de votar uma segunda vez! Como então ficarmos espantados de que os cidadãos considerem, tratando-se da Europa, que a única resposta que lhes é permitido, independentemente das circunstâncias, é sempre o ‘Sim’? E como se pode considerar em democracia e de forma duradoura ter sempre razão contra o sufrágio universal?
Então o que fazer? Em primeiro lugar, deixar de pensar e de falar em termos que se tornaram já obsoletos. Nunca mais nos sentirmos intimidados pelo nosso próprio voluntarismo europeu e devermos então aceitar olhar para a Europa, tal como ela é. Não só tal como ela poderia ser, como gostaríamos que ela fosse, mas como ela é e nos aparece enquanto tal, nua, aos olhos dos europeus.
Em seguida, recusar que o debate sobre o futuro da Europa tenha lugar apenas pela discussão caricatural entre os “pro” e os “anti” Europa. Essa clivagem, estou convencido, já não tem nenhuma relevância. Para os jovens da geração Erasmus, ela é mesmo surreal: eles viajam para Berlim, Praga e Barcelona, eles começaram a sua vida de adultos com o euro; um jovem europeu na sua idade está quase tão perto quanto um seu compatriota de 60 anos. Quando eles se manifestam contra as medidas de austeridade, será necessário dizer-lhes que assim eles estão a opor-se à construção europeia? E os activistas sindicais, que unidos em toda a Europa, se opõem à desregulamentação do mercado de trabalho, dizem-lhes também que eles são “anti-europeus”?
Finalmente, admitamos que uma crise exige mais do que um julgamento moral. Ela impõe que se retomem as próprias perguntas em si mesmas, sem nos satisfazermos com as velhas respostas. A marcha atrás – o regresso à autarcia – é uma ilusão. Já foi dito mil vezes, e com razão. Mas a fuga para a frente – “não existe nenhuma alternativa” – é outra ilusão. Por termos e durante muito tempo confundido os fins e os meios de aí chegar, o credo europeu está em riscos de se tornar uma língua morta. Isto seria uma tragédia muito dolorosa. Evitá-la pressupõe finalmente que se renuncie aos argumentos de autoridade. Isso não é estar a culpar a Europa do que não lhe incumbe, mas sim de lembrar esta primeira evidência: a construção europeia só é valida e só existe na medida em que ela está ao serviço dos europeus, e não de um dogma que há bastante tempo nos empurra contra a parede. Preferir a integridade do sistema bancário em vez do bem-estar dos cidadãos, é preparar, antes de mais nada, é permitir a rejeição da ideia de Europa pelos povos europeus, é permitir a dissolução da ambição comunitária em 27 indiferenças nacionais. É muito pouco dizer-se que, para evitar isso, os caminhos propostos por Nicolas Sarkozy, Angela Merkel e as direitas europeias são caminhos sem saída, sem esperança. Mas essa nulidade não pode exonerar as esquerdas de um reajustamento, tornado crucial, do seu próprio discurso europeu e dos actos que se lhe seguirem.