REFLEXÕES SOBRE A MORTE DA ZONA EURO, SOBRE OS CAMINHOS SEGUIDOS NA EUROPA A CAMINHO DOS ANOS 1930

Selecção, tradução e introdução por Júlio Marques Mota

Parte II

(conclusão)

A experiência de um quotidiano que virou completamente

Tudo ruiu. A culpa é do azar, a culpa é da crise, a culpa é dos erros, também. ” Não há quedas a pique, assim, desta maneira, sem que tenhamos nós próprios falhado nalguma coisa “, admite Isabelle K. Foi entre 2009 e 2012. Três anos durante os quais esta jovem dirigente de empresa, depois de ter tido a falência, perdeu um emprego e tentou em vão a criação de novas empresas, start-ups, ela roçou mesmo a miséria.

 Dir-se-á ainda que há bem pior que isto.. Isabelle K. não foi para a rua. O seu muito mal-estar não é o dos sem-nada, o seu mal-estar não é o dos verdadeiramente abandonados pela vida, dos que nunca tiveram nada ou ninguém que os ajudasse. A sua aflição, para ela, era o resultado da experiência de um quotidiano que virou completamente, uma situação como muitas que a crise “fabrica” agora. A história de uma ‘nova pobre’, habituado a uma vida de bons meios que descobre a precariedade e a incapacidade material de viver como os seus amigos, de repente  estrangeira no seu próprio mundo. ” Entramos numa relação com os familiares e amigos mais próximos onde nos sentimos levados a dizer obrigado e constantemente a toda a gente. Temos mesmo medo que nos perguntem se as coisas vão indo e o mais terrível é mesmo quando eles já não ousam sequer perguntar, tal é evidente a resposta “

A queda iniciou-se em 2005, quando a Agência de comunicação perdeu o seu principal cliente, um grande grupo de distribuição. Isto significou uma perda de 40% do volume total de negócios, assim evaporados, de repente. Liquidação judicial, apresentação do pedido de declaração de falência.. A família mudou-se para um apartamento um pouco menor, 110 metros quadrados, 1 600 euros, na zona da République. Isabelle K., 48 anos de idade, que não contribuiu para um seguro privado, sabe que um patrão não tem direito a subsídio de desemprego.

Os “caçadores de cabeças” que ela consulta têm o sentido do tacto: “uma mulher que durante cerca de dez anos foi dirigente de empresa assusta toda a gente. “Taxa de empregabilidade: próxima de zero”, ouve ela dizer. Isabelle K. cria uma nova agência, mas a crise de 2008 irá dar-lhe o golpe de misericórdia.

A renúncia a tudo

Para desencantar algumas centenas de euros mensais, ela fez algumas horas numa empresa de transportes por bicicleta. Ela ocupa-se da parte administrativa, o seu marido pedala e anda a passear os turistas. Em 2011, eles ganham quase mais nada e esgotaram as suas poupanças. Eles deixam de poder pagar a sua renda : sem nenhum salário, nem sequer meios para mudar de sítio, não há nenhuma maneira de se mudarem, mas o proprietário, esta é sua sorte, é paciente. O casal relaxa um pouco. A depressão,  esta começa a vencê-los, Os três filhos (de 20, 18 e 15 de idade) encaixam. A filha mais jovem, cai na escola, nos seus estudos, derrapa completamente. Ela disse: “Estou farta.”  A sua mãe responde: ” eu também.”

Isabelle K. fala-nos da sua renúncia a tudo. Aos poucos, insidiosamente. Perde o que lhe dá mais prazer, depois, levam-lhe tudo o que lhe é mais necessário. “Três anos a perguntar diariamente, como vai ser amanhã. E a dizer-se : “isto, não pode ser.” As primeiras coisas a que é levada a abdicar não lhe fazem grande estrago emocional.. Acabou com as viagens, é claro. Acaba com a assinatura da Televisão por cabo mas mantém a Internet para não se desligar do mundo mas quando se telefona contam-se os s segundos, com um pacote de tarifa de uma hora. Mantém o seu velho Fiat 600 por princípio, mas nunca mais se encheu o depósito. Abandonam-se também os fins‑ de‑semana na zona rural. Deixa-se de ir ao cinema. Já não se vai às lojas dos centros comerciais, por prazer de ir. ” De 15-17 anos, a minha filha tinha o guarda-roupa de uma criança do quarto mundo: duas calças, duas camisolas, uns sapatos furados.”

É preciso poupar, não se toma mais o café no café, ao balcão, a 1,50 euros. Também não se convida ninguém a beber um café. Muito menos nos podemos sentar nas esplanadas para telefonar a uma amiga porque não há mais carregamentos no portátil. Deixa-se de comprar o jornal, deixa de se poder comprar  vinho, , deixa-se de comprar sumo de fruta, deixa-se de comprar sobremesas, deixa-se de comprar carne, deixa-se de comprar peixe. Muitas batatas, compram-se muitas batatas. Só se podem colocar livros a 2 euros sob a árvore de Natal. Só se fumam os cigarros que vos dão. Por falta de seguro de saúde, evita-se a ida ao médico. As crianças deixam de ir fazer hipismo, a dança, ao ski, ao judo, à comédia musical.

Deixa-se de ir ao restaurante com os amigos. “Eles pensam às vezes fazer-vos bem propondo-nos sair uma vez de três em três meses, mas eles não percebem que mesmo isso já não é possível. Eles não percebem que se vive, prestando atenção a tudo, como os muito pobres, mesmo se não o somos ainda completamente. Os convites acabam por ser cada vez mais raros. Alguns têm medo de cair em mau sítio. A vida de merda nos outros, isso irrita, isso inquieta.

“OUhé, Eu roubei

K. de Isabelle nunca mais foi ao cabeleireiro. O seu marido passou a cortar-lhe o cabelo mais mal que bem, como sabia, e ela pintava-o. À quinta vez o cabelo ficou amarelado. Também tinha que cortar o dele, diz ela. Quando uma pessoa se torna pobre, torna-se feia. A maquilhagem, essa, eu resolvi o problema: eu decidi que ia roubá-la. Eu achava tudo isto muito injusto e além disso, de ter também um aspecto muito sujo.. “

Isabelle K olha-nos de frente, nos olhos. E di-lo com insistência, ainda espantada de ter chegado aí: sim, eu roubei.  Roubei maquilhagem, roupas e pequenos bijoux para a minha filha, pequenas coisas para lhe dar alegria. Eu decidi que estes senhores da grande distribuição poderiam dar- me um pouco de prazer.” Uma ou duas vezes, roubei comida. Saladas, legumes, não foie-gras, não trufas. ” O luxo, explica-ela, disso não precisava. Como não éramos verdadeiramente pobres, eramos convidados para casa dos nossos pais e sogros ou de amigos a comer coisas boas e beber bons vinhos. Estes são detalhes que nos ajudam a mantermo-nos.”

E eis que Isabelle K., que encontrou desde há um ano um emprego remunerado, não deseja aparecer sob o seu próprio nome. Durante estes três anos onde ela cruelmente pensava ter atingido o fundo, aperfeiçoou algumas capacidades de que ela nem suspeitava. Não, para não se deixar apanhar, por exemplo, para roubar, devia antes  comprar outra coisa em vez de  não comprar nada. Em outras palavras, para poder roubar é necessário comprar qualquer coisa em vez de não comprar nada. Outra técnica, usada no Monoprix: saber poupar para aproveitar as promoções. “Antes de ficar sem dinheiro, disse, nunca se sabe: para ter o segundo pacote por metade do preço, deve-se ter o dinheiro suficiente para comprar dois pacotes ao mesmo tempo.” Este é raramente o caso.” Por outras palavras: para beneficiar das promoções, não se deve ser verdadeiramente pobre.

A angústia generalizada

A família vai-se mais ou menos desenrascando para ganhar e ter com que matar a fome, sem passar pela Sopa dos pobres. Até agora, até este mês de Abril de 2011, mês em que Isabelle K. já não tem mais nada. Nem um euro com ela. “Este é o único momento em que estou cheia de vergonha. Telefonei para a minha irmã, a chorar : “eu estou com fome. Eu não aguento mais.” O pior é isto: estar em frente de seus filhos e dizer-lhes: “eu não posso. Este mínimo que eu vos devo, eu não tenho para vo-lo dar. Eu não posso alimentar-vos, matar-vos a fome. ” Pensei seriamente em me suicidar.”

Isabelle kK guardou o diário da sua queda na pobreza. Vários cadernos, “os testemunhos do meu mal-estar”, como ela lhe chama, cheios de uma caligrafia fina, meticulosa, que começa depois a aparecer tremida e mais pequena em períodos de grande depressão. Tudo foi registado. A ansiedade generalizada, a vida ” a cair em farrapos “. “Só pensava no dinheiro, em como fazer para o ter, disse ela. Mesmo quando não se gasta mais nada, isto continua: a cantina, o restante do imposto, a electricidade, o gás, a manutenção da caldeira. Deixa-se de poder dormir.” Ela também registou as coisas que se esforçou e muito em evitar. “Eu estava a lutar para não me transformar em pessoa desagradável, invejosa, azeda. Eu não queria invejar nada seja dos ricos seja dos árabes.”

Isabelle K. acabou por se tornar empregada de um dos seus clientes de uma empresa que ela mesma tinha criado. A família vivia sobre o seu salário, 4 mil euros mensais. Os seus dois filhos estão a estudar, um a fazer psicologia, o outro a licenciar-se em filosofia. A menina está o fazer o BAC, ou seja, está no final do secundário. “Eles, pelo menos, compreenderam que ser e ter são características que não estão ligadas,” diz Isabelle K. A primeira vez que ela recebeu o seu novo salário, ela comprou um cartão ilimitado de UGC, para poder ir ao cinema, quando desejasse. Ilimitada como um remédio contra a inquietação, contra esta consciência dolorosamente consciente de que as coisas não vão durar sempre.

 Marion Van Renterghem

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