História de uma noite fria em Dublin, comentários sobre uma história de encantar
Um texto a partir de outros textos, por Júlio Marques Mota
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Parte I
Recentemente, a Irlanda foi aos mercados e, tudo bem, os spreads não dispararam, houve procura dos seus títulos de dívida, de quem nem sabemos, a Irlanda pode retomar o caminho do crescimento e deixar a recessão para trás, já a ficar para trás do outro lado da esquina e por onde já se passou a caminho agora de um bom porto de abrigo. Alívio portanto. Um exemplo de austeridade a seguir. Portugal pode fazer o mesmo que a Irlanda, apertar na borracha da austeridade, exprimir ao tutano o povo português e poderá voltar depois aos mercados, talvez faminto, roto e esfarrapado, mas poderá voltar. Esta é versão que circula por aí, que o governo insinua, esta é a versão que Mário Draghi também apresenta, quando afirmou em Março último:
“O Governo irlandês tem feito progressos muito significativos e alcançado resultados muito significativos em várias frentes, e não me canso de dizer isso. É necessário ainda mais acção, especialmente do lado bancário, na frente do sector financeiro. (…). Este não é o tempo para descansar ou para sermos complacentes. O Governo irlandês deve continuar os seus esforços com a mesma eficácia que tem caracterizado a sua acção no passado.”
Mas a verdade é toda ela bem diferente, é uma outra narrativa. É a verdade de uma noite em que muitos homens não dormiram, homens sem sono a criarem uma ratoeira onde apanharam, depois, as ratazanas assassinas de Frankfurt. Esta é pois a história de uma noite de ventos frios na Irlanda que aqui vos deixo, mas deixo no ar uma pergunta: não há em Portugal homens e mulheres capazes de criar ratoeira semelhante à que foi criada em Dublin?
A mistificação do sucesso irlandês é a do sucesso da austeridade, a realidade é bem outra, num tempo em que a Itália é um enorme barco à deriva, em que a Europa corre enormes perigos de retomar os dias mais quentes da crise, em que o euro volta a correr o risco de desaparecer, num tempo em que o barco BCE tem que se aguentar. A realidade deste nosso tempo de agora é que nesta confusão criada, o Banco central da Irlanda financia o Estado Irlandês em cerca de 30 mil milhões. Uma troca de uma nota promissória de cerca de 30 mil milhões por títulos da dívida pública irlandesa a 40 anos e com taxas que passaram dos 8% por cento para os 3 % com uma economia anual em termos de serviço da dívida de 2 mil milhões. A Irlanda pode então descansar, os mercados podem descansar, o BCE deixou fazer, afinal, o que devia deixar fazer e desde há muito tempo já.
Diz-nos Orwell que todos os países são soberanos mas uns mais que outros, e para Bruxelas e para Frankfurt é exactamente assim, uns são assim, Alemanha, Finlândia, Holanda, outros assim assim, a França, a Bélgica, e outros assim assado. Nesta última categoria estaremos pois nós, os portugueses, os gregos, os cipriotas, e outros mais pequenos que irão rapidamente aparecer. Entre os assim assim estarão também a Espanha e a Itália e para esse grupo terá agora passado a Irlanda, aproveitando o medo que assalta estes dois centros de poder europeu citados, como iremos mostrar abaixo . É caso para dizer, viva o palhaço, Berlusconi, viva o grilo, Beppe Grillo, viva o susto que os italianos pregaram aos eurocratas, aos oligarcas europeístas sediados nas duas cidades de decisão do poder na União Europeia É isto que seguramente pensarão os irlandeses. É também isto que os portugueses gostariam de dizer, é isto que Passos Coelho não permite demitindo-se, porque se o fizesse talvez tivéssemos uma solução, uma não solução de imediato, à italiana, ou antes talvez fosse permitido a António José Seguro, aliviando-nos da carga da dívida, aliviando-nos da pressão dos mercados, permitindo agarrar a trajectória possível do crescimento. Por isto, Passos Coelho não se vai demitir, pois é um homem que quer ser apenas um bom rapaz, cumpridor do que está nos Tratados, respeitador de Merkel contra Draghi e num momento em que este à frente do BCE talvez queira fazer agora o possível, talvez queira passar ao plano dos factos, talvez queira ultrapassar o artigo 123 do Tratado, talvez queira então cumprir a sua promessa, a de querer salvar o Euro. Talvez.
E quanto à evolução da Europa diz-nos Edward Hugh: “Assim poderia ser e, muito provavelmente, será o que vai ter de acontecer. Quando se está a caminhar sobre uma ponte feita de cordas e esta começa a ranger e a balançar em seguida, têm-se a ideia que não há mais nenhuma alternativa que não seja a de continuar a caminhar para o outro lado. Todos nós já vimos muitos filmes sobre o que acontece às pessoas que tentam voltar para trás.”
E, se assim não for, “ talvez tudo isto vá acabar em lágrimas, mas poderá ser divertido enquanto dura.
Então estamos fora duma esplêndida experiência monetária, com o Japão a conduzir as manobras. Como Paul Krugman tão apropriadamente o sintetiza no título de um seu artigo recente – “É o Japão o país do futuro, novamente.” E a moral – ” será de uma amarga ironia se alguém com cara de muito mau , com todos os motivos errados, acabar por fazer as coisas economicamente correctas, fazendo as coisa certas, enquanto os meninos bons rapazes falharam porque estes estavam muito determinados a serem, apenas , uns bons rapazes.”
E é aqui que entra a nossa história de Dublin por outros contada e por mim aqui sintetizada, ocorrida a 6 de Fevereiro de 2013.
Dublin viveu uma noite louca para resolver o seu problema bancário. Um movimento que levou o país a obrigar o BCE a aceitar as suas condições.
Havia nessa noite um perfume de crise da dívida em Dublin. O governo irlandês lançou um procedimento acelerado para a liquidação do banco irlandês Irish Bank Resolution Corporation (IBRC), que inclui os restos dos bancos Nationwide e Banco Anglo Irish, que foram nacionalizado em 2009 e 2010.
Uma noite para agir
Cerca das 17 horas, na quarta-feira, a Reuters e Bloomberg começaram a evocar uma eventual liquidação do banco. Michael Noonan, o ministro irlandês das Finanças teve medo. Se esta notícia se espalha , os depositantes em IRBC vão esvaziar as suas contas e os detentores de obrigações emitidas pelo IRBC vão i procurar resolver suas posições, vender os títulos, recuperar o seu dinheiro aí investido. O valor do banco corre o risco de acír a pique e o projecto de liquidação, planeado o para ser feito sem grandes sobressaltos, lentamente, desde Setembro, corre o risco de ser destruído, .
No início da noite, Michael Noonan, portanto, inicia o processo. Têm que dar por concluído o processo antes da abertura dos mercados e dos balcões, dos guichets. No início da noite, os dirigentes de IRBC são enviados para casa e o controle do banco é confiado à empresa KPMG. Por volta das 20:30, um projecto de lei com 52 páginas é enviado ao Conselho de Ministros. Neste prevê-se a transferência de todos os activos do IRBC para o banco público NAMA e a emissão por este último de obrigações para se pagar aos credores. O projecto é apresentado em emergência ao Seanad, o Senado irlandês, que adoptou, imediatamente, por volta das 3 da manhã, no Dail, a Assembléia Nacional da Irlanda, que também o aceita e aprova. Nenhuma alteração é tolerada. Por volta das 6 da manhã, o Presidente irlandês, Michael Higgins, voltou à pressa de Roma, e promulga a lei. O IRBC deixou de existir.