AINDA A PROPÓSITO DO 25 DE ABRIL DE 1974: A DEMOCRACIA É «UM SONHO LINDO PARA VIVER, QUANDO TODA A GENTE ASSIM QUISER» – por Carlos Loures

Nesta excelente canção, José Mário Branco exprime o sentimento dos que, sofrendo a violência da ditadura, aguardaram a chegada da Democracia e, decorridos os 18 meses que mediaram entre 25 de Abril de 1974  e 25 de Novembro de 1975, viram a «normalidade» regressar e a democracia reduzida a uma dimensão formal.  Para muitos antifascistas, democracia era apenas liberdade e fraternidade – a igualdade não fazia para eles sentido. Porém, sem igualdade, não existe liberdade nem fraternidade. Nem democracia. Como pode ser livre e fraterno quem tem fome?  Democracia continua a ser uma ideia pela qual se luta. Continua a ser um sonho.

O poeta António Gedeão garantiu que «o sonho comanda a vida». Por seu turno, Lenine disse no seu «Que Fazer?»: «Se o homem estivesse completamente privado de sonhar, se não pudesse, de vez em quando, adiantar-se e contemplar com a sua imaginação o quadro inteiramente acabado da obra que se esboça entre as suas mãos, não se me afigura que motivos o obrigariam a compreender e levar a cabo vastas e penosas empresas no terreno das artes, da ciência e da vida prática» […] «O desacordo entre os sonhos e a realidade não produz qualquer dano, desde que a pessoa que sonha creia seriamente no seu sonho, se fixe atentamente na vida, compare as suas observações com os seus castelos no ar e, em geral, trabalhe escrupulosamente na concretização das suas fantasias. Quando existe algum contacto entre os sonhos e a vida, tudo vai bem» No mesmo texto dizia ainda: «Ai desses homens mesquinhos que não sabem sonhar!».

Durante a ditadura, sonhávamos com a democracia – alguns limitavam-se a sonhar, outros sonhavam e agiam no sentido de tornar o seu sonho realidade, estabelecendo a tal relação entre a utopia e o mundo real de que fala Lenine. Subitamente, em Abril…

Foi numa tarde do Verão Quente de 1975. A uma janela de uma avenida de Lisboa, via passar uma manifestação onde se gritavam palavras de ordem. Ao meu lado estava um democrata que estivera preso e fora perseguido pela polícia política. Antifascista, ex-membro do Partido Comunista, naquela altura mais ligado ao Partido Socialista, mas homem, por aqueles anos setenta, com grande fortuna pessoal e com uma posição importante. Abanou a cabeça e comentou: «- Não foi para isto que se fez o 25 de Abril! Não foi por isto que eu lutei e fui perseguido». «Isto», eram os gritos de «abaixo a exploração capitalista», e os graffiti que os manifestantes iam deixando pelas paredes da avenida, como um rasto ou como um eco da sua ruidosa passagem – e também as greves, os saneamentos, o Copcon… Não respondi, pois não havia resposta possível, tanto mais que eu, que também tive os meus dissabores durante a ditadura, sempre pensei que um dia as pessoas se poderiam manifestar livremente. Tinha sido mesmo por «aquilo» que eu tinha lutado. Por aqui se vê, como o termo antifascista é vago, impreciso e ilusório. Mas cada um podia, e pode, sonhar o que lhe aprouver.

Luigi Pirandello, o dramaturgo italiano escreveu uma peça a que deu o título Para Cada Um Sua Verdade. De facto, quando antes da Revolução, falávamos da «unidade dos antifascistas», verbalizávamos uma utopia dando corpo a uma ideia que só podia ter viabilidade no curto-prazo – a unidade de que se falava era a da acção contra a ditadura. Mal a ditadura caiu, a ilusão da unidade caiu com ela – os interesses individuais, de classe, as opções políticas, fizeram ruir essa ficção. Para cada um havia uma verdade. A sua verdade.

Aquela explosão popular que encheu as ruas e que significou o fim da guerra colonial, a concessão da independência às colónias, a criação de dezenas de novos partidos, o nascimento de assembleias populares nas empresas, nos bairros, nas escolas, apanhou todos de surpresa. Aquela onda de paixão democrática que, como um tsunami varreu o País de Norte a Sul, surpreendeu todos, apanhando desprevenidos, não só os patrões, como também os democratas e antifascistas que tinham conspirado e lutado contra o regime ditatorial (o sujeito que ao meu lado abanava a cabeça em tom de censura, era um deles); surpreendeu até mesmo os partidos e movimentos que, criados na clandestinidade, tinham como razão da sua existência a crença na força dos trabalhadores e a esperança no advento da democracia. A ilusão da democracia, ganhando as ruas e os corações, excedeu o que a nossa capacidade de sonhar, pudera imaginar. Pensávamos que nada seria como até então. Que tudo ia mudar. Porém, lá veio o 25 de Novembro «repor a normalidade» e, como diz o José Mário Branco em «Eu vim de longe», – Foi um sonho lindo que acabou, houve aqui alguém que se enganou…

O meu companheiro da varanda no Verão quente já morreu, mas ainda viveu o suficiente para ver cumprido o seu sonho – os administradores a administrar, os corruptos a enriquecer, os trabalhadores a trabalhar, os marginais a aterrorizar, os políticos a politicar… tudo arrumadinho, tal como ele sonhara. Mas agora sou eu quem diz: – e então o meu sonho? – Não foi para isto que se fez a Revolução, não foi por isto que lutei.

3 Comments

  1. Muito bem, Carlos. Concordo com tudo. É asim como eu veio a Revolução e a Contrarrevolução de Portugal. E sigo pensando em o 25 de Novembre; sou amigo de Duran Clemente e muito tengo falado com ele de esse tempo; aun no acabo de entenderlo bem…

    1. Obrigado, Moisés. Os militares, quer em 25 de Abril, quer em 25 de Novembro, interpretaram o sentir das maiorias. As eleições de Abril de 1975 tinham determinado uma maioria conservadora. A «maioria de esquerda» era uma ficção, pois resultava da soma dos votos no PS aos da esquerda parlamentar – maioritariamente, o PS não era um partido de esquerda (embora algumas das suas «sensibilidades» – minoritárias – assim pudessem ser consideradas). A culpa do fracasso da Revolução, só pode ser atribuída aos revolucionários – inconsequentes, sectários, pondo sempre a sua verdade mesquinha acima de tudo. E enfrentavam um inimigo poderoso, sem moral, sem ética e sem princípios. A direita não se dividiu em função de ideologias. E Mário Soares foi um autêntico cavalo de troia que, agitando os fantasmas do totalitarismo comunista, abriu as portas ao capitalismo selvagem.

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