“PALAVRAS MAL DITAS” OU “PALAVRAS MALDITAS”? – 3 – por Álvaro José Ferreira

Fernando Pessoa escreveu a dado passo: “A canção é uma poesia ajudada”. Está implícito que um poema fica a ganhar se for cantado, mas não deixa de valer per si, isto é, sem a muleta da música e do canto (caso contrário não seria poesia). Quem conhece a obra discográfica de Pedro Barroso sabe que muitos dos seus textos musicados/cantados pertencem a essa categoria: são poemas, antes de tudo. Como tal, bons para serem lidos em silêncio ou ouvidos, na forma dita, podendo acompanhar-se a audição com a leitura. Esta edição de livro com CD faculta ao amante de poesia todas essas opções, para alguns textos anteriormente cantados e muitos inéditos. Já tive o ensejo de fazer a audição acompanhada com a leitura e posso testemunhar o quanto essa experiência me foi gratificante e enriquecedora. Em vez de “Palavras Mal Ditas” (só “mal ditas” quando se tem como referente, altíssimo e praticamente inatingível, as “Palavras Ditas”, de Mário Viegas), a obra bem poderia ter o título de “Palavras Malditas”. Na verdade, muitas delas são mesmo malditas: para a irresponsabilidade (individual e colectiva), a desonestidade, a intrujice, a cupidez, a mediocridade, a mesquinhez, a ignorância arrogante, a incúria, a inércia, a indiferença ao sofrimento alheio, o desrespeito pela Natureza… – em suma, tudo o que vai em sentido contrário ao bem-comum e ao direito que todo e qualquer ser humano tem de viver com dignidade. Palavras de um poeta desencantado, mas não de um céptico: subsiste a esperança – não a esperança tola e zé-povinha, mas a ideia de que os homens (livres, lúcidos e honestos) podem – assim nisso se empenhem – construir um Futuro mais justo, harmonioso e vivível. Estranhamente, ou talvez não, estas “Palavras Mal Ditas” têm sido (quase) completamente ignoradas por rádios e televisões, inclusive as do sector público. O blogue “A Nossa Rádio” não pactua com essa ocultação e é com muita honra que faculta a audição/leitura de 5 dos 32 poemas.

ÁRVORE

Amei-te como o vento ama a montanha, Tive por ti silente essa paixão Abracei-te os braços, os espaços A beleza adulta e firme do teu tronco E converti no dia-a-dia ir visitar-te Num exercício de beleza e emoção.

Fiz de ti, com os anos, minha cúmplice, Minha confidente sempre, minha amante E naquele sítio eras, sem saber, A única coisa realmente bela e importante.

Quantas vezes, passando, te admirava, Em contraluz, ao pôr-do-sol, num gesto; E havia qualquer coisa de fidalgo no teu porte, E na tua solidão um manifesto.

Mas ao passar no outro dia a curva, Ao sopé do velho outeiro, Pelo sítio onde habitavas, enorme, a tua dignidade, Tinham-te cortado cerce por inútil e doente.

Ficou no verde monte aquele vulto ausente E a marca solene do que me foste sempre: – Matriz, forma antiga, sombra, abrigo, confidente, Espanto de céu, recortada intensidade.

Regras da vida e da morte revistas num momento: Para eles eras apenas lenha velha comida pela idade, Ninguém te prestou especial solenidade.

Apenas para mim, ao que parece, Eras mais que um ser vivo – um monumento. Para toda a gente, eras apenas Uma árvore secular atacada pelo tempo.

LIMITES

Há homens que se vendem por vaidade

Há homens que se vendem por dinheiro

Há até quem se venda um bocadinho

E outros que se vendem por inteiro

Uns crescem comprando a consciência

Outros fabricando um futurozinho

Para uns já perdi a paciência

Para os outros não lhes quero ser nem vizinho

Vivo no lado norte extremo do orgulho

Cavalheiro, cavaleiro doutra idade

Quando canto, atrevo a elegância

Quando escrevo, atrevo a liberdade

Não ergo as mãos por causas sibilinas

Em curvas encobertas de encoberto

Grito o gesto e mordo o desespero

Se vejo injustiça, aí, estou perto

Não há meio de deixar de ser assim

Nem me quereria eu doutra maneira

Esmoleres caricaturas, compromissos,

Chatos em geral, gente toupeira,

Besuntados, comprados, graciosos,

Respeitáveis, colunáveis de carreira,

Untuosos perfis, lugares manhosos,

Deixem-me ser livre assim e sem coleira.

E caso a caso dir-vos-ei que penso

Vento limpo soprará minha bandeira

Não me vendo por vida nem por morte

Ninguém me comprará outra carreira

Acomodei-me demais a esta obediência

Guerreiro das palavras sem viseira

Por bússola sigo a minha consciência

E tenho a minha boca por fronteira.

“PALAVRAS MAL DITAS” OU “PALAVRAS MALDITAS”?

A MORTE E A MORTE

Velhos sem amor e sem notícia de ninguém.

Descobrimo-los por toda a parte agora, espantados; como se nunca fora assim.

Está bem patente o modelo de sociedade do futuro.

Filhos no desemprego ficam adolescentes eternos.

Casas vazias albergam a miséria da morte envergonhada de abandono.

Sobrinhos distantes, netos sem saber.

Um estado vigilante e curador que não cura, nem cuida, nem zela, nem protege; negligente, distante, indiferente.

Vizinhos com medo de vizinhos.

Silêncios que não se investigam por inércia e indiferença. Eu quero lá saber!

Afinal que morte nos aguarda? Que regime de pré-morte por ignomínia? E por nojo de viver assim? Sem o halo humano de um abraço.

Dói no peito que tenhamos caído neste coabitar com as rotinas mais bestiais da indiferença humana.

Construímos um monstro social. O valor das paredes vale mais que o valor dos abraços e da vida.

Vestimos a morte em vida, na injustiça, no trabalho e no cansaço.

Durante a vida visível compete-nos sermos travestis de felicidade, irmos andando.

E afinal agora descobrimos que depois da morte, ainda vem mais morte e mais silêncio.

Como se uma só morte não bastasse já.

A da vergonha imensa de que tudo seja insensibilidade assim.

Camuflada por um qualquer parágrafo e artigo legal que juridicamente desculpará o impropério.

O insulto dos vivos na febre invisível dos dias insensatos e indiferentes.

QUERO VIVER NUMA CIDADE

Quero viver numa cidade

Onde o dia seja brando

Onde a noite seja branca

E um rio vá deslizando…

Onde a vida seja calma

A segurança vulgar

E os jardins sejam longos

E as tardes de vagar…

E onde a História me relembre

Entre lendas de além-mar

De heroísmos e bravuras

E romances de encantar.

Quero viver numa cidade

Com a montanha a espreitar

Casas mistério, tão alto

Penduradas, a pensar

Quero praias, quero rios

Um sorriso em cada porta

Um afago em cada mão

Um abraço que conforta.

Quero viver numa cidade

Com as taxas moderadas:

Quanto baste para a saúde

Quanto baste para as estradas!

Onde a morte seja a lua

Com as estrelas ao vento

Ao fim de duzentos anos

Ainda saudáveis, sem sofrimento.

Quero viver numa cidade

Com operários construtores

Mulheres de sonho na boca

Homens de pedra aos amores

Monumentos para a memória

Obeliscos para o prazer

Coisas do gozo e da glória

Volúpias sem ter vergonha

Sem medo de acontecer.

Quero viver numa cidade

Com casas lindas ao sol

Como palácios ao vento

Ou castelos de Almourol

Parques frondosos e largos

Onde os amantes se recolhem

Com beijos doces e amargos

Tendo o céu como lençol.

Quero viver numa cidade

Nem nua nem pardacenta

Onde cada qual trabalhe

No que gosta de fazer;

Eu canto – tu dás-me o pão

E assim decorre o viver

Mesmo o trânsito nas ruas

Decorre, modéstia à parte,

Fluente e sem acidente

Não há pressa nem enfarte

E só chegar é urgente!

Há tempo de passear

E, já agora, a cidade

– Como enorme novidade!… –

Tem espaço p’ra se estacionar.

Quero viver numa cidade

Onde há gente sorridente

Que te acolhe em cada loja

Com o prazer de ajudar-te

E onde vais poder comprar

Em vez de drogas e punhos

Pedaços de poesia

Numa galeria d’arte!

Quero viver numa cidade

Com gosto, respeito e espaço

Com autocarros humanos

Tocando em fundo Vivaldi

E tempo para andar a passo.

Quero viver numa cidade

Grande como a terra inteira

Onde caiba todo o campo

Todo o mundo, todo o encanto

Tu e eu e toda a gente

Passageiros de primeira

Numa cidade diferente

Que mesmo sendo modesta

É uma cidade imponente

Onde viver é uma festa

Pelo sorriso, pela gente

Aqui mesmo à minha beira…


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