Fernando Pessoa escreveu a dado passo: “A canção é uma poesia ajudada”. Está implícito que um poema fica a ganhar se for cantado, mas não deixa de valer per si, isto é, sem a muleta da música e do canto (caso contrário não seria poesia). Quem conhece a obra discográfica de Pedro Barroso sabe que muitos dos seus textos musicados/cantados pertencem a essa categoria: são poemas, antes de tudo. Como tal, bons para serem lidos em silêncio ou ouvidos, na forma dita, podendo acompanhar-se a audição com a leitura. Esta edição de livro com CD faculta ao amante de poesia todas essas opções, para alguns textos anteriormente cantados e muitos inéditos. Já tive o ensejo de fazer a audição acompanhada com a leitura e posso testemunhar o quanto essa experiência me foi gratificante e enriquecedora. Em vez de “Palavras Mal Ditas” (só “mal ditas” quando se tem como referente, altíssimo e praticamente inatingível, as “Palavras Ditas”, de Mário Viegas), a obra bem poderia ter o título de “Palavras Malditas”. Na verdade, muitas delas são mesmo malditas: para a irresponsabilidade (individual e colectiva), a desonestidade, a intrujice, a cupidez, a mediocridade, a mesquinhez, a ignorância arrogante, a incúria, a inércia, a indiferença ao sofrimento alheio, o desrespeito pela Natureza… – em suma, tudo o que vai em sentido contrário ao bem-comum e ao direito que todo e qualquer ser humano tem de viver com dignidade. Palavras de um poeta desencantado, mas não de um céptico: subsiste a esperança – não a esperança tola e zé-povinha, mas a ideia de que os homens (livres, lúcidos e honestos) podem – assim nisso se empenhem – construir um Futuro mais justo, harmonioso e vivível. Estranhamente, ou talvez não, estas “Palavras Mal Ditas” têm sido (quase) completamente ignoradas por rádios e televisões, inclusive as do sector público. O blogue “A Nossa Rádio” não pactua com essa ocultação e é com muita honra que faculta a audição/leitura de 5 dos 32 poemas.
ÁRVORE
Amei-te como o vento ama a montanha, Tive por ti silente essa paixão Abracei-te os braços, os espaços A beleza adulta e firme do teu tronco E converti no dia-a-dia ir visitar-te Num exercício de beleza e emoção.
Fiz de ti, com os anos, minha cúmplice, Minha confidente sempre, minha amante E naquele sítio eras, sem saber, A única coisa realmente bela e importante.
Quantas vezes, passando, te admirava, Em contraluz, ao pôr-do-sol, num gesto; E havia qualquer coisa de fidalgo no teu porte, E na tua solidão um manifesto.
Mas ao passar no outro dia a curva, Ao sopé do velho outeiro, Pelo sítio onde habitavas, enorme, a tua dignidade, Tinham-te cortado cerce por inútil e doente.
Ficou no verde monte aquele vulto ausente E a marca solene do que me foste sempre: – Matriz, forma antiga, sombra, abrigo, confidente, Espanto de céu, recortada intensidade.
Regras da vida e da morte revistas num momento: Para eles eras apenas lenha velha comida pela idade, Ninguém te prestou especial solenidade.
Apenas para mim, ao que parece, Eras mais que um ser vivo – um monumento. Para toda a gente, eras apenas Uma árvore secular atacada pelo tempo.
LIMITES
Há homens que se vendem por vaidade
Há homens que se vendem por dinheiro
Há até quem se venda um bocadinho
E outros que se vendem por inteiro
Uns crescem comprando a consciência
Outros fabricando um futurozinho
Para uns já perdi a paciência
Para os outros não lhes quero ser nem vizinho
Vivo no lado norte extremo do orgulho
Cavalheiro, cavaleiro doutra idade
Quando canto, atrevo a elegância
Quando escrevo, atrevo a liberdade
Não ergo as mãos por causas sibilinas
Em curvas encobertas de encoberto
Grito o gesto e mordo o desespero
Se vejo injustiça, aí, estou perto
Não há meio de deixar de ser assim
Nem me quereria eu doutra maneira
Esmoleres caricaturas, compromissos,
Chatos em geral, gente toupeira,
Besuntados, comprados, graciosos,
Respeitáveis, colunáveis de carreira,
Untuosos perfis, lugares manhosos,
Deixem-me ser livre assim e sem coleira.
E caso a caso dir-vos-ei que penso
Vento limpo soprará minha bandeira
Não me vendo por vida nem por morte
Ninguém me comprará outra carreira
Acomodei-me demais a esta obediência
Guerreiro das palavras sem viseira
Por bússola sigo a minha consciência
E tenho a minha boca por fronteira.
“PALAVRAS MAL DITAS” OU “PALAVRAS MALDITAS”?
A MORTE E A MORTE
Velhos sem amor e sem notícia de ninguém.
Descobrimo-los por toda a parte agora, espantados; como se nunca fora assim.
Está bem patente o modelo de sociedade do futuro.
Filhos no desemprego ficam adolescentes eternos.
Casas vazias albergam a miséria da morte envergonhada de abandono.
Sobrinhos distantes, netos sem saber.
Um estado vigilante e curador que não cura, nem cuida, nem zela, nem protege; negligente, distante, indiferente.
Vizinhos com medo de vizinhos.
Silêncios que não se investigam por inércia e indiferença. Eu quero lá saber!
Afinal que morte nos aguarda? Que regime de pré-morte por ignomínia? E por nojo de viver assim? Sem o halo humano de um abraço.
Dói no peito que tenhamos caído neste coabitar com as rotinas mais bestiais da indiferença humana.
Construímos um monstro social. O valor das paredes vale mais que o valor dos abraços e da vida.
Vestimos a morte em vida, na injustiça, no trabalho e no cansaço.
Durante a vida visível compete-nos sermos travestis de felicidade, irmos andando.
E afinal agora descobrimos que depois da morte, ainda vem mais morte e mais silêncio.
Como se uma só morte não bastasse já.
A da vergonha imensa de que tudo seja insensibilidade assim.
Camuflada por um qualquer parágrafo e artigo legal que juridicamente desculpará o impropério.
O insulto dos vivos na febre invisível dos dias insensatos e indiferentes.
QUERO VIVER NUMA CIDADE
Quero viver numa cidade
Onde o dia seja brando
Onde a noite seja branca
E um rio vá deslizando…
Onde a vida seja calma
A segurança vulgar
E os jardins sejam longos
E as tardes de vagar…
E onde a História me relembre
Entre lendas de além-mar
De heroísmos e bravuras
E romances de encantar.
Quero viver numa cidade
Com a montanha a espreitar
Casas mistério, tão alto
Penduradas, a pensar
Quero praias, quero rios
Um sorriso em cada porta
Um afago em cada mão
Um abraço que conforta.
Quero viver numa cidade
Com as taxas moderadas:
Quanto baste para a saúde
Quanto baste para as estradas!
Onde a morte seja a lua
Com as estrelas ao vento
Ao fim de duzentos anos
Ainda saudáveis, sem sofrimento.
Quero viver numa cidade
Com operários construtores
Mulheres de sonho na boca
Homens de pedra aos amores
Monumentos para a memória
Obeliscos para o prazer
Coisas do gozo e da glória
Volúpias sem ter vergonha
Sem medo de acontecer.
Quero viver numa cidade
Com casas lindas ao sol
Como palácios ao vento
Ou castelos de Almourol
Parques frondosos e largos
Onde os amantes se recolhem
Com beijos doces e amargos
Tendo o céu como lençol.
Quero viver numa cidade
Nem nua nem pardacenta
Onde cada qual trabalhe
No que gosta de fazer;
Eu canto – tu dás-me o pão
E assim decorre o viver
Mesmo o trânsito nas ruas
Decorre, modéstia à parte,
Fluente e sem acidente
Não há pressa nem enfarte
E só chegar é urgente!
Há tempo de passear
E, já agora, a cidade
– Como enorme novidade!… –
Tem espaço p’ra se estacionar.
Quero viver numa cidade
Onde há gente sorridente
Que te acolhe em cada loja
Com o prazer de ajudar-te
E onde vais poder comprar
Em vez de drogas e punhos
Pedaços de poesia
Numa galeria d’arte!
Quero viver numa cidade
Com gosto, respeito e espaço
Com autocarros humanos
Tocando em fundo Vivaldi
E tempo para andar a passo.
Quero viver numa cidade
Grande como a terra inteira
Onde caiba todo o campo
Todo o mundo, todo o encanto
Tu e eu e toda a gente
Passageiros de primeira
Numa cidade diferente
Que mesmo sendo modesta
É uma cidade imponente
Onde viver é uma festa
Pelo sorriso, pela gente
Aqui mesmo à minha beira…