A CANETA MÁGICA – O PAPEL DA CULTURA NA CRIAÇÃO DE CABO VERDE – por Carlos Loures

A partir de hoje, a campanha a favor da classificação da morna como Património Imaterial da Humanidade tem «casa própria» neste blogue – todos os dias, às 14 horas e até a campanha terminar, falaremos da morna, de Cabo Verde, da literatura, da cultura de Cabo Verde. E, este espaço continuará a ser povoado pelas divagações do costume. Hoje, ainda falaremos da morna, ou melhor, de Eugénio Tavares e de como ele não foi um mero «autor de mornas».

A obra de Eugénio Tavares (1867-1930), no seu conjunto – em português e em crioulo – constitui uma peça-chave na criação de uma literatura cabo-verdiana. Foi ele que, criando um conceito nunca antes enunciado, de caboverdianidade, edificou a consciência de que, quer se exprimissem de uma ou de outra forma, existia um espaço identitário para os escritores do Arquipélago. Espaço que o facto de Cabo Verde ser, até 1975, uma nação sem Estado de modo algum punha em causa. Há, deve dizer-se, uma segunda peça na construção dessa identidade – o aparecimento em 1936 da revista Claridade, fundada por Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa e outros. Aquilo que até então houve de livros escritos em Cabo Verde, alguns deles por cabo-verdianos, não nos autoriza a falar de uma literatura cabo-verdiana. Era uma produção cultural subsidiária da portuguesa, ligada à metrópole por um cordão umbilical – Eugénio Tavares e a Claridade cortaram essa ligação.

O primeiro prelo foi introduzido em Cabo Verde no ano de 1842 e em 1856 surgiu o primeiro romance de um autor cabo-verdiano, O Escravo, de José Evaristo d’Almeida, (…) como diz Pires Laranjeira em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, Lisboa 1995, «segue-se um longo período (ainda hoje mal conhecido no que respeita ao século XIX), até à publicação do livro de poemas Arquipélago (1935) de Jorge Barbosa, e da revista Claridade (1936), fundada por Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, entre outros, em que se destacam José Lopes e Pedro Cardoso».

Na avaliação das literaturas de língua portuguesa, «Cabo Verde merece consideração à parte. Apesar de circunstâncias também desfavoráveis, como as de nível de vida e a distância a que o português literário se encontra do crioulo falado, a maior proximidade da cultura metropolitana (e sobretudo da brasileira) e certos fermentos mais antigos da vida literária possibilitaram um surto de escritores em torno das revistas Claridade (…) e Certeza», dizem Óscar Lopes e António José Saraiva numa das primeiras edições da sua História da Literatura Portuguesa, destacando depois nomes como os de Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Eugénio Tavares, que designam por «o poeta do crioulo».

Manuel Ferreira, sem dúvida um dos maiores especialistas portugueses em literatura africana, particularmente na de Cabo Verde, considera Eugénio Tavares, sobretudo um poeta e um jornalista «de excelente qualidade», quer exprimindo-se em português, quer em crioulo. O Tenente-Coronel Joaquim Duarte Silva, um dos mais antigos estudiosos da sua obra, é da opinião que o primeiro texto escrito em crioulo, até então exclusivamente usado na forma oral, é da autoria de Eugénio Tavares. Refere-se a uma «transposição» para crioulo do famoso texto de Camões, Endechas a Bárbara Escrava (Aquela cativa/Que me tem cativo…), feita por Eugénio. Diz a versão crioula – Bárbara, bonita escraba… João Augusto Martins em Madeira, Cabo Verde e Guiné, Carlos Parreira e outros autores, consideram-no o maior poeta lírico de Cabo Verde. Corsino Fortes (1933), escritor e ex-embaixador de Cabo Verde em Portugal, designou-o por o «Camões de Cabo Verde». É por muitos considerado o «pai» da literatura de Cabo Verde e, como disse, o criador do próprio conceito de caboverdianidade, sem o qual não teria sido possível criar uma literatura.

Nem uma verdadeira pátria.

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