SOBRE A NUDEZ FORTE DA VERDADE…- Carlos Loures

Antes de explicar a presença da voz bonita de Gal Costa cantando Aquarela do Brasil, queria advertir os  leitores de que não tenho a pretensão de ensinar História do Brasil aos brasileiros – esta crónica destina-se sobretudo a portugueses e a outros falantes de português que possam não conhecer o que se passava no Brasil quando Ary Barroso criou esta canção. Aos brasileiros que tiverem a paciência para a ler só peço que me informem de eventuais erros factuais, já que os de interpretação da História decorrem de uma perspectiva pessoal, são as divagações de um português que sabe, por amarga experiência própria, o que é viver sob uma ditadura.  E sabe também como as ditaduras se cobrem de mantos fantásticos, sob os quais se ocultam, ou tentam ocultar, os crimes que os regimes totalitários sempre acabam por cometer.

Sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia,  é uma frase lapidar de Eça de Queirós e que figura na base do seu monumento em Lisboa. Teixeira Lopes inspirou-se nesta frase, subtítulo de A Relíquia para o seu magnífico trabalho.. É uma bela frase, embora nem sempre a verdade nua e crua se sobreponha à fantasia e à mentira. Aquarela do Brasil (nós dizemos aguarela) a canção de Ary Barroso( 1903-1963) é um exemplo elucidativo de como uma fantasia pode ocultar a verdade.  Diz-se que numa noite chuvosa do Rio, Ary estava na sala de sua casa conversando com a mulher e o cunhado, quando se sentou ao piano e compôs de um jacto a música e a letra de Aquarela do Brasil. Disse depois, que pretendera libertar o samba das tragédias da vida e das paixões sensuais que dominavam as letras da canção nacional. Talvez sem o pretender, ajudou a branquear um regime iníquo, brutal e corrupto. Para muitos Aguarela do Brasil é o como que um outro hino do país. Numa sondagem organizada pela Academia Brasileira de Letras, a Aquarela ficou em primeiro lugar. A letra, também de Ary Barroso, canta um Brasil idílico, uma terra de sonho, onde o samba é rei. Será que, em 1939, o Brasil era assim tão agradável para ser pintado numa aguarela de cores tão vivas? Talvez o fosse para os ricos e para os turistas. E para a grande maioria dos brasileiros?

Em 1939, quando a canção foi composta, eclodiu a II Guerra Mundial. governava o Brasil, Getúlio Vargas. Chegara ao poder em 1930 mercê de um golpe militar, pondo termo à “República Velha” e depondo o presidente Washington Luís. As instituições democráticas foram desmanteladas – dissolução do Congresso e das assembleias legislativas. Em 1932, eclodiu em São Paulo uma revolução constitucionalista, derrotada pelas forças governamentais. Em 1934, a ditadura consolidou-se com a aprovação de uma nova Constituição. Getúlio foi eleito para um mandato de quatro anos.

Em 1935, novas revoltas e movimentos insurrecionais organizados pelo Partido Comunista Brasileiro, foram reprimidos pelo Governo. Em 1937, pretextando a existência de uma conspiração comunista para tomar o poder, em 10 de Novembro, Getúlio desencadeou um golpe de Estado,. Era o Estado Novo (nome igual ao do regime corporativo de Salazar e, segundo tudo o indica, nele inspirado). Em 1 de Janeiro de 1938, Getúlio promulgou uma nova Constituição Até 1945, o país seria governado de forma autoritária, num regime parafascista. Em Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos (1892-1953) descreveu , em páginas de grande beleza e rigor, o que acontecia aos presos políticos – torturas, sevícias, quando não mesmo a morte.

O povo, não falando numa minoria de privilegiados, continuava a viver numa pobreza lancinante, alimentado por discursos demagógicos de recorte justicialista. Foi neste quadro de miséria, dor e repressão que Ary Barroso (escreveu a sua Aquarela do Brasil, o retrato falso de um país triturado pela repressão getulista. Foi, no entanto, um grande êxito. Na imaginação dos que viviam num mundo em guerra, a existência de um paraíso, era reconfortante.

O filme baseado no livro «1984» de George Orwell foi realizado em 1985, por Terry Gilliam, chamou-se «Brazil» e, como tema recorrente, soa a Aquarela do Brasil. Num mundo disfuncional, como é o que Orwell criou na sua obra, não haveria tema mais adequado para a banda sonora – uma realidade cruel e um retrato colorido, belo e falso dessa realidade. Foi exactamente assim que funcionou a música de Ary Barroso no Brasil de 1939. Um país onde imperava o terror de um governo fascista e a miséria endémica coberta pelo manto diáfano de inomináveis assimetrias sociais, aparecia transmutado em paraíso, naqueles anos em que o horror da guerra tornou apelativo o bilhete postal colorido que Ary Barroso compôs numa noite em que a chuva flagelava o Rio de Janeiro.

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