NOVA CRÓNICA DE FARO Nº 3 – PARTE II. DE FARO COM AMOR, DE ESTOI COM HORROR. Por JÚLIO MARQUES MOTA

Meus caros

A segunda parte de uma crónica  já iniciada. As vivências de um velho por uma cidade que  não é sua. Ao ler o que por aqui se escreve talvez sejamos levar a pensar que se trata de delírios da terceira idade. Talvez seja assim. Talvez nada disto se tenha passado, talvez nada disto se tenha ouvido, talvez nada do que aqui se transcreve  tenha sido escrito e lido. Talvez. Mas uma pergunta:   mas não parece a realidade actual apresentar mais sinais de delírio que esta crónica, que se pretende expressão da realidade mas que, como ficção , fica sempre aquém da realidade que quer simular e que a todos incomoda .

Um texto a publicar em  A Viagem dos Argonautas.

Boa paciência para a leitura para aqueles que gastarem alguns minutos a olhar para ela, as minhas desculpas pela liberdade tomada para aqueles a quem não interessa e que devem então  fazer delete.

JMOta

2. De Estoi com horror

PARTE II
(continuação)

No dia seguinte, àquele em que me encontrei  com a pessoa que penso ser uma alta patente militar na reserva, destroçada por razões diferentes do que aquelas que aqui abordamos, por razões que nada têm a ver com a sobrevivência física, quase que animal, a que grande parte da população portuguesa está a ser sujeita, uma infelicidade não menos intensa, mas de natureza naturalmente muito diferente, voltei ao café para precisar  um pouco melhor a história da carreira militar do “meu menino” de Estoi.  Retomo a crónica onde terminei a crónica de ontem intitulada: De Faro com amor.

E não o encontro no café. Em seu lugar, uma empregada enquadrada numa faixa etária dos 55-60 anos, cara de vida bem sofrida, mãe de dois filhos. O rapaz que aqui costuma estar, que lhe aconteceu, pergunto eu.. “Não sei”, respondeu. Não sabe? Mas como é que está aqui a esta hora da noite e para sair perto da uma da madrugada em vez dele? perguntou eu. “Sabe, estou cá para substituir quem falta, e não importa quem. Mas não me cabe saber porque falta, foi a  resposta recebida.” Eis pois  uma  mulher que a vida  poderia ter feito para odiar toda a gente. Como, pergunta-se? Simples, porque vive do mal dos outros e quando se tem filhos estes estão acima de tudo, de toda a ética e, portanto,  poderia desejar o mal dos outros para seu próprio benefício, para ter trabalho. Poderia ser assim, mas o homem é um animal social e portanto não se rege por estes critérios de utilitarismo. Esta mulher também não. Nada tem a ver com a lógica neoliberal que se ensina nas Universidades, nos jornais, nas televisões.

Face ao que me ela me transmite,  penso que, no seu caso,  se trata de mais um caso que não tem amanhã, que caminha no vazio,  que não tem a mínima ideia de quando irá ter trabalho. E como se pode construir uma vida nestas condições, sem uma bússola para nos guiar, como é a situação da maioria dos que não têm trabalho? Espantoso, mãe de dois filhos, de cara bem calcinada pela vida supostamente bem sofrida, dorida, porque nada mais há onde se empregue,  aceita esta situação. A relembrar-me de um  meu passeio pela noite de Faro, a recordar-me da frase de um  meu amigo, desempregado de longa duração,  com quem percorri durante a noite e pela noite fora quase toda a cidade de Faro, para quem  o futuro hoje  não passa para lá do  amanhã e, mesmo esse, só a partir do final da tarde do dia anterior é que se pode falar . Este é o caminho a que nos trouxe o gang dos neoliberais com assento no poder, com assento nos grandes bancos, com assentos nos importantes centros de decisão, com assento nas Universidades. E aqui lembro-me de um artigo que tinha lido no Le Monde onde se falava do mercado de trabalho na Inglaterra.

Diz-nos o Le Monde:

Nos contratos de trabalho ditos de “zero-horas”, não há nenhuma indicação de horários ou duração mínima de trabalho, nada disto é mencionado. Na Grã-Bretanha, há cada vez mais e mais trabalhadores a estarem empregados sob o “contrato de zero-horas”, literalmente, “zero horas do contrato”. Um estatuto que encontra tanto sucesso como de controvérsia à volta dele.

Pensado para promover a flexibilidade do mercado de trabalho, o contrato de “zero horas” prevê  que o empregado fique disponível  a qualquer hora do dia. Na prática, os empregados são geralmente informados de uma semana para a outra, do número de horas a realizar e são convidados a estarem disponíveis à chamada, se necessário. Por cada  hora de trabalho será pago o salário mínimo, ou seja de €7,30. Por seu turno, o empregador não tem que garantir uma duração mínima de trabalho.

 Desde a sua chegada ao mercado britânico, em 1974, a multinacional americana McDonalds  tem  constantemente recorrido a este tipo de contrato, de acordo com o diário britânico. Mas o gigante americano está longe de ser a única empresa posta em causa . No final de Julho, The Guardian revelou que a Sports Direct, o primeiro vendedor de artigos de desporto da Grã-Bretanha, empregava 90% da sua força de trabalho – 20.000 pessoas – sob “contrato zero horas”. Mais surpreendentemente ainda, o palácio real não escapou à polémica: os 350 empregados sazonais  de Buckingham, já a tempo parcial, estão empregados com este estatuto.

O serviço público não fica de fora. A saúde é o segundo empregador antes do ensino, onde a parte dos efectivos  empregados  em “contratos de  zero horas” atingia  respectivamente 13% e 10% em 2011. Em Abril de 2013, o Financial Times estimava que os  hospitais públicos na Grã-Bretanha empregavam 100.000 pessoas sob esse estatuto. Um aumento de 24% em dois anos.

Dada a dimensão do fenómeno, sintomático da crise económica, o sindicato principal no serviço civil britânico no Reino Unido (UK), Unison, protestou  contra a utilização destes  contratos  que apresentam  “enormes inconvenientes  em comparação com o trabalho regular e permanente”. Porque à incerteza de trabalhar e de ser pago, acrescenta-se  a ausência de férias remuneradas e subsídios de doença, aos quais  o estatuto não concede tais direitos. Em alguns casos, em particular,  para os trabalhadores sazonais do Palácio de Buckingham, os funcionários  estão  proibidos de trabalhar para outro empregador.

Face às pressões e à polémica  crescente e controversa, Vince Cable, Secretário de estado do comércio, limitou-se a dar uma resposta meramente evasiva. Encarregado pelo governo de publicar um relatório  sobre os “contratos de zero-horas”, este afirmou  em 5 de agosto, estar a considerar  algumas possíveis mudanças. Nomeadamente, a proibição para as empresas estarem a evitar que estes empregados possam  trabalhar para outras empresas. Por outro lado, qualquer revogação do estatuto é julgada improcedente. Avanços tímidos, no condicional e sem nenhum calendário específico.

O texto do Le Monde é, pois, bem claro. No país berço da revolução industrial,  os trabalhadores (um milhão), estão afinal como esta mulher de cerca de 55 anos, sem amanhã, sem garantias de nada, sem acesso a direitos de saúde, restringida de direitos de férias, sem direito a nada.  Sem se poderem sentir como membros da sociedade, pois a esta praticamente só tem  que dar e dela nada a receber. Com uma diferença de detalhe, o governo inglês admite reformular o sistema de contratos para garantir mais um “direito”, o de se poder acumular empregos precários, o que é agora impedido para quem seja super-explorado pela rainha de Inglaterra. Mas do “meu menino” de Estoi não há notícias que me serenem, não veio trabalhar. Apenas isto.

(continua)

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Para ler a Parte I desta crónica, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/08/21/nova-cronica-de-faro-no-3-parte-ii-de-faro-com-amor-de-estoi-com-horror-por-julio-marques-mota/

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