FALEMOS ENTÃO SOBRE POESIA – 2 – por Carlos Loures

Nesses textos que tenho publicado, digo que «no princípio era o trabalho». A mão andou sempre à frente do cérebro. No entanto, a formulação correcta será: foi a mão que abriu caminho ao cérebro, fabricando utensílios que iam aumentando a capacidade da mão e agilizando o raciocínio. Quando Gramsci, em Os Intelectuais e a Organização da Cultura , considera falaciosa a distinção entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais, distinção que abre caminho a todas as assimetrias e injustiças sociais, e afirma que todo o trabalho humano é de índole intelectual, é a interacção mãos-cérebro-mãos que se refere. Sem esforço intelectual, não haveria sementeiras e colheitas, não haveria agasalhos. Nem livros.

O homem primitivo não separava a actividade do objectivo que a exigia – acção, actividade, objectivo formavam um todo, uma unidade indissolúvel. A abstracção vem depois, com o advento da palavra. A palavra vem substituir a magia, vem ela própria transformar-se em magia. Ao falar, todo os homens eram magos. A palavra veio consolidar a passagem do animal ao ser humano. E diga-se em registo irónico que a expressão «animal racional», com que o homo sapiens é designado, nem sempre faz sentido. O raciocínio com que o homem avalia situações e prepara acções futuras, leva-o a cometer actos irracionais. Coisa que um animal dito irracional nunca fará, pois cada espécie tem a capacidade necessária para resolver os problemas que a natureza lhe coloca. Ao invés, o homem nem sempre consegue encontrar o caminho de saída nos tortuosos labirintos criados pela inteligência e pelo raciocínio que dela resulta. Mas regressemos ao tema.

.Com a palavra nasceu a poesia, disse num outro texto em que falei de George Thomson e do seu estudo sobre a origem e a evolução da poesia. Após a publicação desse artigo, foi-me chamada a atenção para a antiguidade do texto de Thomson (e a primeira edição do texto de Fischer remonta já aos anos 60). As deduções que estabeleço não se baseiam nas últimas descobertas da antropologia, é um facto. Mas não é o estar em dia nessa informação que me preocupa. Há reflexões de Aristóteles que continuam a ser pertinentes. E ele não via a «National Geographic»…

Esta é precisamente um das maiores funções da literatura e arte contemporânea. Finalmente, o homem que se tornou homem pelo trabalho, que superou os limites da animalidade transformando o natural em artificial, o homem que se tornou um mágico, o criador da realidade social, será sempre o mágico supremo.

 A arte, em todas as suas formas, era uma actividade comum a todos e elevando todos os homens acima do mundo animal. Mesmo muito tempo depois da quebra da comunidade primitiva e da sua substituição por uma sociedade dividida em classes, a arte não perdeu seu carácter colectivo. Somente a verdadeira e autêntica arte consegue recriar a unidade entre o singular e o universal. Somente a arte consegue elevar o homem de um estado fragmentado a um estado de ser íntegro, total. A arte é uma realidade social. Um poeta, um músico, um pintor, são tão indispensáveis como um padeiro ou um carpinteiro.

 Embora não tenha consciência disso, a sociedade necessita do artista e da arte É a arte, entendida nos seus múltiplos aspectos, que leva o homem a compreender a realidade, e mais , a suportá-la e, até a transformá-la, tornando-a mais humana. A arte é indispensável. Sem ela a humanidade fica amputada e confinada à sua animalidade. Sem arte não há humanidade. Poderá haver robôs ou produtos da engenharia genética.

Mas já não serão homens.

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