A ILUSÃO DA AUSTERIDADE, PORQUE É QUE UMA MÁ IDEIA CONQUISTOU O OCIDENTE, por MARK BLYTH(1) – III

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

A ilusão de austeridade, porque é que uma má ideia conquistou o Ocidente

Mark Blyth

(CONTINUAÇÃO)

A armadilha liquidacionista

Embora um medo do Estado e da sua dívida tenha sido criado e integrado no liberalismo desde o seu início, só quando os estados emergiram e se tornaram grandes e fortemente endividados para que fosse compreensível o discurso da  redução das despesas públicas e do endividamento  é que a oposição ao endividamento dos governos passou a estar na moda na política. Na década de 1920 e 1930, particularmente na Áustria e Estados Unidos, um número crescente de economistas procurou explicar porque é que as economias reais, apesar das suas supostas tendências para o equilíbrio automático, pareciam estar igualmente sujeitas a situações de forte subida e de fortes descidas para não se dizer mesmo que estas mudanças, estes altos e baixos, eram bem espectaculares. A resposta dada por essa escola de pensamento foi a de que os bancos emprestaram demasiado dinheiro o que levava a uma má afectação de capital em investimentos duvidosos. Eventualmente e talvez também de forma inevitável o dinheiro barato que estaria a alimentar estes investimentos iria secar e as taxas de juros subiriam com o acompanhamento inegável de um cortejo de falências que se lhe seguiria. O resultado, como diria Andrew Mellon, secretário do Tesouro dos Estados Unidos sob o presidente Herbert Hoover, é que com isso se vai “limpar a podridão do sistema…. Pessoas… vão viver uma vida mais moral…. E as pessoas com capacidade empresarial distar-se-iam das pessoas menos competentes.

Em suma, argumentavam os austerianos, a farra do financiamento da dívida poderia ser curada apenas pelo expurgo da austeridade. O papel do Estado seria então o de ficar fora do caminho e deixar o processo desenvolver-se. “O Liquidacionismo” – defendia que as empresas em situação de possível falência fossem liquidadas como sendo a solução para os problemas económicos — era o nome do jogo, e então Washington tentou fazê-lo durante a Grande Depressão. E tal como hoje na zona euro, este jogo simplesmente não funcionou. Mesmo sobre o Reino Unido, uma abordagem semelhante, argumentando que a utilização da expansão das despesas públicas como instrumento para travar uma queda da economia significaria simplesmente estar a aumentar a dívida e a eliminar o investimento privado, tornou-se bem conhecida e  ficou conhecida como ” o ponto de vista do Tesouro”. Esta política austeriana também foi posta em prática e, também, aqui falhou, tornando ainda maior a queda da economia britânica.

Isto significa tomar como referência A Teoria Geral de Keynes em articulação com a análise das repetidas falhas das políticas de austeridade para salvar as economias que foram aplicadas durante a década de 1930, para liquidar definitivamente a ideia de uma politica de austeridade  como sendo uma ideia aceitável e respeitável. De modo nenhum, portanto. Os mesmos três argumentos que acima foram expostos – sobre a distribuição, composição e sobre a lógica – também aqui são críticos. Em conjunto com os resultados práticos dos terríveis ensaios das políticas de austeridade como forma realizados  nos anos 1930 e 1940 – incluindo a experiência da Segunda Guerra Mundial, que parecia justificar a necessidade e a eficácia de uma intervenção massiva intervenção governamental na economia – estes argumentos foram reformulados para aplicar as políticas de austeridade e estas falharam, pura e simplesmente, as economias entraram em colapso. Porque é que, então, se voltou para trás, para os anos 40, e com tanta  ou mais força agora, cerca de 60 anos mais tarde? Para responder a essa pergunta, precisamos de nos centrar uma vez mais nos Estados Unidos, onde o modelo austeriano de altos e baixos encontrou uma ressonância inesperada na crise financeira de 2008, e a viagem, a partir daí, para a Alemanha pós-guerra, onde o pensamento económico assente nas políticas de austeridade conseguiu sobreviver ao longo inverno keynesiano e deu origem à resposta económica face à crise que tem caracterizado a zona euro.

Como é que os alemães fazem?

Uma das coisas estranhas sobre os programas de pós-graduação em economia após a década de 1970, quando a estagflação finalmente assumiu um grande relevo fora do keynesianismo, foi a de que se poderia trabalhar num doutoramento nas melhores escolas nos Estados Unidos e nunca ter tido uma aula sobre teoria monetária , sobre operação bancárias ou sobre crédito. Isso era assim porque na estrutura neoclássica que surgiu após o auge da teoria Keynesiana, a moeda era visto como sendo neutra nos seus efeitos a longo prazo sobre a economia real (não se mudavam nem as preferências nem a outras possibilidades), enquanto as expectativas dos agentes eram sempre vistas como sendo prudentes e racionais. Num tal mundo pleno de felicidade sempre em convergência para a (ou na)  situação de equilíbrio, o crédito é simplesmente encarado como sendo rendimento de gasto deferido de uma pessoa e que é transferido para uma outra que o utiliza como antecipação do seu rendimento futuro e os bancos são simplesmente veículos para o investimento. A crise financeira de 2008, que revelou um mundo real de híper-alavancagem em créditos, de empréstimos excessivos, uma cegueira total e intencional face ao risco por parte dos actores supostamente racionais, veio abalar fortemente estes quadros mentais. Mas isto não é de forma alguma visto como um choque para ninguém desde que tenha andado e ande ainda a ler estes defensores das políticas de austeridade.

A crise parecia estar a desenrolar-se exactamente de acordo com o modelo de Mises e Hayek sobre as quebras bruscas na economia: os bancos emprestaram dinheiro, os estados serviram de garantia aos bancos , os consumidores endividaram-se em excesso e o capital foi mal aplicado, alimentando-se assim uma bolha monumental no sector da habitação no período de 2000 a 2007. O modelo contém em si-mesmo uma prescrição de política clara: não se devem socorrer os bancos. Mas depois disto já ter sido feito e da dívida privada do sistema bancário estar bem acima da dívida pública, a única coisa que restava fazer – tal como os austerianos argumentaram em 1920 e 1930 – era a de cortar nas despesas públicas e de reduzir a dívida, acelerar as falências quer das empresas em grande dificuldade quer dos indivíduos endividados e deixar a via aberta para as “pessoas empreendedoras….” pegarem nos destroços a partir das pessoas menos competentes.

Os cortes orçamentais não levam ao crescimento; podem funcionar apenas em pequenos Estados que possam exportar para os Estados grandes que estejam a crescer.

O Liquidacionismo voltou a estar em moda, ressuscitou, mas só porque os economistas e decisores das políticas tinham esquecido os argumentos anteriores que tinham sido afirmados contra ele, esquecimento este que se verificou  durante o longo interregno neoliberal de quase três décadas. Num mundo de mercados eficientes e de consumidores racionais, o tipo de crise que agora o Estado está a enfrentar tinha sido considerado teoricamente impossível. Então, quando a crise deflagrou, a única abordagem que de forma consistente levou os altos e baixos dos bancos a sério foi a escola da austeridade – pelo que devemos mesmo agradecer parcialmente aos alemães.

Dada a história da Alemanha com a inflação e com a deflação na década de 1920 e 1930, a estabilidade financeira sempre foi a palavra de ordem da economia alemã do pós-guerra. Mas o que realmente tem distinguido o pensamento económico alemão é sua rejeição do Keynesianismo – porque esta teoria nunca fez muito sentido para os decisores da política económica alemã, considerando a forma como a economia alemã tem na verdade estado a funcionar.

O crescimento económico alemão sempre foi orientado para a exportação. As prioridades de Berlim depois da Segunda Guerra Mundial foram, portanto, a de investir na reconstrução da estrutura e do volume de capital do país (o que significava manter uma forte limitação ao consumo interno) e a de recuperar os mercados à exportação (o que significa manter os custos e assim, os salários, baixos). Com a procura externa mais importante do que a procura interna, o seu crescimento era determinado pela competitividade e pela estabilidade monetária e não pelo seu consumo interno. Todos os programas de estímulos governamentais que se fizessem neste sistema levariam ao aumento dos custos de produção e baixariam a procura externa dos bens que a Alemanha exporta.

Este é um grande modelo económico pelo lado da oferta, é um  modelo de uma economia orientada para a exportação, com uma forte autoridade monetária e com produtos supercompetitivos. O problema é que, como Highlander, só pode haver apenas um e só um. Nem todos os países europeus podem ser uma Alemanha e ter excedentes; os outros precisam de ter défices, exactamente como quando alguém está a querer poupar é aí  necessário para que isso suceda que alguém esteja a gastar, para além do seu próprio rendimento. Infelizmente, a Alemanha foi capaz de conceber e de impor as principais instituições da UE e da zona euro à sua própria imagem, criando-se assim uma zona de forte concorrência forte com uma autoridade forte nesse campo e um banco central extremamente independente e obcecado pela ideia de inflação. Assim, no momento em que dispara a crise grega, a objecção particular da Alemanha contra o keynesianismo foi transposta para a orientação da política que tem sido aplicada em toda a zona euro, com os resultados desastrosos que bem se conhecem.

A Alemanha podia cortar na sua etapa para o crescimento, uma vez que as fontes do seu crescimento estão fora das suas fronteiras: é o campeão das exportações no mundo. Mas a Europa como um todo não pode reproduzir essa característica, especialmente porque os países asiáticos também são excedentários. Como muito bem expressou Martin Wolf, o colunista do Financial Times, “e se todo o mundo quisesse ter excedentes na sua balança corrente”? Se assim fosse, “com quem é que as suas balanças correntes seriam excedentárias – com os marcianos?” As ideias que estão na base do projecto institucional da economia alemã no pós-guerra e no da própria União Europeia podem funcionar bem para a Alemanha, mas elas funcionam muito mal para todo o continente europeu  como um todo, que não pode ter um excedente na balança corrente, por mais que o queira conseguir. Mais uma vez, trata-se de questões de composição.

Para ver o que é que pode acontecer a seguir, podemos olhar um pouco mais para o passado, para a última vez que estas políticas foram levadas a cabo em grande escala, para a década de 1930 e para o caos que se lhes seguiu. Mas uma tal  história é irrelevante, poderão os nossos críticos objectar, uma vez que há  casos mais recentes, em lugares como o Canadá e a Irlanda na década de 1980 ou  os PECO mais recentemente e onde se mostra o oposto, onde se mostra que a austeridade leva ao crescimento. Mas não, estes críticos não têm nenhuma razão pelo que, na verdade, então vale a pena actualmente olhar para estes casos , também.

(continua)

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Para ler a Parte II deste artigo de Mark Blyth, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/11/15/a-ilusao-da-austeridade-porque-e-que-uma-ma-ideia-conquistou-o-ocidente-por-mark-blyth1-ii/

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(1) – Ver a nota publicada na primeira parte deste trabalho, em:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/11/14/a-ilusao-da-austeridade-porque-e-que-uma-ma-ideia-conquistou-o-ocidente-por-mark-blyth1-i/

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