Na “Turandot”, de Puccini, há três personagens secundárias que raramente são recordadas. Respondem pelos nomes de Ping, Pang e Pong e são os três ministros do Imperador da China, pai da princesa Turandot.
É destes três burocratas um dos mais inspirados trechos desta ópera, “Ho una casa nell’Honan”, um queixume de ministros cumpridores, sobrecarregados pelo monótono trabalho. Começa Ping por contar que tem uma casa em Honan, com o seu laguito azul rodeado de bambu, e que tão longe da sua casa está ele, ai de si, a dissipar a sua vida, a partir a cabeça debruçado sobre os livros sagrados, quando poderia voltar ao seu lago azul. E continua Pang, lamentando as suas florestas em Tsiang, e mais belas do que essas não há, mas onde não voltou a haver sombra para ele. E acrescenta Pong que o jardim que deixou perto de Kiu para ir servir o Imperador, nunca, nunca mais poderá rever.
É uma hábil tessitura de nostalgia e de humor, a que Puccini tece, porque o lamento dos três ministros nunca deixa de ser tocado por uma certa comicidade, e se com eles suspiramos pela dissipação da vida nas tarefas rotineiras e sem interesse vital, não deixamos de olhá-los com certa sobranceria porque bem mais fácil se afigura ver o ridículo nos outros que em nós mesmos. E em Ping, Pang e Pong, se assim estivermos dispostos, bem podemos ver a máscara da auto-comiseração, aquela que em algum momento todos envergamos.
Quando as tarefas do dia-a-dia – redutora expressão da sucessão de dias indistintos no seu comum cinzentismo – se fazem insuportáveis, e é imperioso levantar a cabeça dos livros sagrados e buscar a linha do horizonte, é para a casa de Honan que vou, ou para as florestas de Tsiang ou para o jardim de Kiu, esses espaços de suprema liberdade, aquela de que não podem desprover-nos enquanto nos pertencerem a memória e a imaginação.
Um poema recitado para nós mesmos, sem pronunciar uma sílaba em voz alta, enquanto a broca do dentista avança na sua trepidação furiosa, a inesperada irrupção de uma frase musical a meio de uma tarefa comezinha, a evocação, num momento de incerteza ou de fracasso, daqueles a quem admiramos, o desvio que se faz no caminho para subir ao sítio mais alto da cidade, ou para buscar uns azulejos que sobreviveram à derrocada – não são, todos eles, a nossa casa de Honan? E que dizer do que se escreve, com o único intuito de partilhá-lo ou da pausa a meio do dia para ler o que os outros nos contam, não são também a nossa casa de Honan, com o seu lago azul rodeado de bambu?
Nesta casa que hoje cumpre o seu primeiro semestre, também aqui se ergue Honan, suprema morada do espírito, a qual nem a mesquinhez nem o mais denso cinzento poderá derrubar.