CONTOS & CRÓNICAS – “Maria Lucinda” – por Margarida Ruivaco

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A hora de dormir é a mais angustiante. De resto vivo bem com isso.

A sua figura, sinistra para tantos, não me causa medo. Já me habituei a ela, há mais de vinte anos que  o vejo assim, a perder cabelo e de orelhas e nariz a crescerem. Os seus olhos encovados, castanhos, até são meigos, por muito que me digam que parecem sempre ausentes.

O ar de cabide pendurado num armário, oh…, sempre o teve, ele e os seus muitos fatos castanhos, a camisa branca, o pullover de decote em bico e gravata a condizer. Sempre o conheci assim, e a bem dizer, sempre fica com ar mais apresentável do que por casa, com os pijamas grossos de que tanto gosta, seja de Inverno ou nos picos do Verão.

Por isso, quando o vêem à borda da estrada, de olhar fixo na estrada, à espera que passe o carro conduzido pelo ajudante, com os braços compridos pendurados, amorfos ao longo do corpo, é só ele a ser ele, o agente funerário, o cangalheiro, o Undertaker, como já lhe ouvi chamarem, o ser mais inofensivo que possam imaginar, o meu marido.

Mas à noite, e quem diz noite, diz a hora da sesta, quando a faço nos fins de semana quentes, nos domingos de chuva miudinha, a mania dele deixa-me os nervos em franja.

Basta que me deite na cama, para que ele se abeire de mim e me comece a compor. Tenho de ficar de barriga para cima, de pernas juntas e braços cruzados sobre o peito. Ajusta-me a roupa, a camisa de dormir, o que tenha vestido na altura, ajeita-me o cabelo e põe-me um terço entre as mãos.

Puxa o lençol ( sempre rendado, a seu pedido) e deixa-me ali, sem me poder mexer, como se estivesse num caixão.

No sofá, se lá me deito, a mesma coisa, e se não encontra uma mantinha, já me fez o mesmo com naperons e toalhas de mesa.

Não satisfeito, não descansa enquanto não me fecha as pálpebras com os dedos húmidos, suados.

E pronto, é só nisto que me sinto insatisfeita com ele, de resto, não vejo nenhum problema, não reclama da arrumação da casa, nunca reclama da comida, não me falta com nada em casa. Só não sei se é normal ele nunca se ter deitado comigo, nem no dia do casamento, mas também não sei, nunca falei disto com ninguém…

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