Foto: José Magalhães
O túnel da Ribeira é curto, uns duzentos metros, se tanto, mas caótico, à maneira latina.
É um túnel de outro tempo, trânsito nos dois sentidos e corredores para os peões, por onde se caminha depressa para fugir aos tubos de escape, ao calor e às buzinadelas amplificadas. É por causa dos peões, e não pela vaga infracção de trânsito, que eu nem sempre buzino no túnel e se o faço não é mais que uma vez, mas buzinar no túnel da Ribeira é uma tradição da cidade, toda a gente sabe.
Na segunda passada – era 12 de Agosto e foi um dia aziago – entrei no túnel vinda da ponte, encandeada pelo sol baixo do fim da tarde, demasiado ocupada em não atropelar os magotes de turistas que desciam a cada instante o passeio e pousavam imprudentemente as pernas escaldadas na faixa de rodagem, alterada pelo caos da cidade e pelo meu, e foi como se entrasse por uma passagem desconhecida, para um outro mundo (paralelo? perpendicular?) onde as regras só podem ser outras. Quando os meus olhos se ajustaram à luz do túnel, vi, assim como os outros condutores, todos em marcha lentíssima e de olhos arregalados para os corredores para peões, viam também, o assombroso cortejo que aí passava.
Lá em cima, nas passagens pedonais, desfilavam: seis galgos afegãos, passeados por uma mulher muito alta, de vestido branco, com folhos excessivos e decote comedido; a banda de metais de S. Policarpo da Encosta, conhecida pela ferocidade das tubas e a doçura dos fliscornes; Louis-Ferdinand Céline, com um saco plástico na mão, rosnando, em calão dos anos 20, contra o ruído do túnel que lhe agravava o zumbido nos ouvidos, a sua medalha trazida da guerra; uma antiga carquejeira da rampa da Corticeira, carregada com o molho de 50 quilos de carqueja que haveria de acender os fornos da cidade; uma cabra-brava, um bisonte europeu e um garnisé, em ordeira fila indiana; a minha antiga professora da escola primária, cujo nome não digo porque ainda deve ser a minha pergunta secreta de alguma conta de email, tão loira e sorridente como dantes, sem palmatória; a formação completa dos Beirut; o polícia sinaleiro que orquestrava a passagem do trânsito à entrada da ponte e que leva anos desaparecido, à conversa, em linguagem gestual, com uma freira de hábito branco; um engolidor de fogo, de pele reluzente à luz das chamas que cuspia para o tecto; e a encabeçar o cortejo, já próximo da saída do túnel, um pavão albino, de luminosa cauda aberta, como um dente-de-leão que não nos atrevemos a soprar. E perante tudo isto, ninguém, pasme-se, se atreveu a buzinar.
Acabou-se o túnel e a cidade recuperou as formas irregulares, ruas inclinadas, passeios esventrados, azulejos cansados das mesmas fachadas e que se soltam, mais por angústia que por falta de aderência, sobre as cabeças dos turistas, trabalhadores que emergem, para espanto de ninguém, das tampas do saneamento, calçadas íngremes, descidas tortuosas, o rio, aqui ao lado, travestido de iates em festa, como se fosse alegre, como se não o conhecêssemos e não nos tivesse arrebatado gente querida.
Isto do túnel é uma farsa montada para ingénuos, digo, pela janela, a um turista que atravessa a passadeira e que tem cara de que não me entende. Querem convencer-nos que o que importa é a luz no final, mas no escuro acontecem muitas coisas, se calhar as mais importantes, acrescento ainda, com a cabeça de fora da janela.
O turista aponta-me, com maus modos, para a passadeira pintada no chão. Não percebeu, pois não, era de esperar. Há coisas que só se entendem na penumbra, ao sol desaparecem. Não, a luz ao fundo do túnel não importa nada, o que conta é como atravessamos a escuridão.
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Da beleza do texto, passo em revisão outros túneis menos agradáveis, onde acontecem coisas menos agradáveis – cheiros, demonstrações sexuais, medo, desejo de chegar ao fim depressa sem que nada de mal aconteça, desejo que apareçam outros seres que sejam, pelo menos, indiferentes, ou que, em caso de aflição, não finjam ignorar…
E daí, passo para pensar no GRANDE túnel, bem NEGRO, em que todos nos encontramos neste momento, no aqui e agora. E sim, de facto, “o que conta é como atravessamos a escuridão”. Para que, no fim, haja luz!