Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Document: Rapport d’information sur la politique française et européenne vis-à-vis de la Russie – Uma síntese
Publicado por Kiergaard, 3 Março de 2014
Parte I
Um relatório do Senado francês- Uma leitura obrigatória
Num relatório de informação da comissão dos negócios estrangeiros da Assembleia Nacional os deputados Thierry Mariani e Chantal Guittet (PS) – Presidente do grupo interparlamentar de amizades franco-russa) analisam a política francesa e europeia no que diz respeito à Rússia.
O relatório, registado o 12 de Fevereiro de 2014 (terminado possivelmente em meados de Janeiro) e publicado apenas esta semana, permite fazer o ponto sobre o estado das relações entre a Rússia e a Europa e entre a Rússia e a França. Se os recentes acontecimentos estiverem a fazer descarrilar algumas das propostas do relatório, muito provavelmente será assim, este relatório não deixa de ser, contudo, uma síntese particularmente detalhada e clara dos problemas no terreno.
A situação em Ucrânia não é abordada sob o ângulo dos recentes acontecimentos, mas acessoriamente através das temáticas da União Eurasiática ou do debate aquando da discussão do relatório. Eis pois alguns excertos seleccionados do relatório, selecção feita de maneira totalmente subjectiva (convenhamos):
• A perenidade desta prosperidade, largamente fundada sobre a renda petrolífera e do gás, e deste regime suscita certamente interrogações. Mas, pelo momento, a situação actual da Rússia dá-lhe os meios de uma diplomacia de poder bastante clássica, que se pode considerar virada para o futuro e pouco “construtiva”, mas que com efeito faz dela um parceiro incontornável no jogo internacional.
A monografia consagrada à Rússia no relatório que acompanha esta classificação [classificação sobre a competitividade – Davos] sublinha vários pontos fortes da economia russa: o bom estado das finanças públicas; o elevado nível do sistema educativo; o seu muito largo mercado doméstico; infra-estruturas julgadas sobretudo boas. Mas aponta também várias fraquezas: a insuficiência da concorrência (com uma política ineficaz em matéria de restrições aos investimentos estrangeiros) e a ineficácia dos mercados; a mediocridade das instituições públicas; a falta de confiança nas instituições financeiras; o fraco nível de adaptação às evoluções tecnológicas…
• Outros estudos de opinião incidindo sobre a confiança nas Instituições sublinham a popularidade do Presidente – que aparece intuitu personae como a instituição que suscita a maior confiança – assim como o conservantismo da sociedade russa, que coloca a sua confiança em instituições tais como o exército e a Igreja, mas que desconfia e em muito das instituições supostas deverem encarnar os valores democráticos, como a Duma e a justiça, talvez evidentemente porque, tendo em conta o seu funcionamento, estas instituições não desempenham os papéis que deveria ser o deles
• A visão antes negativa que se pode ter de uma diplomacia russa nostálgica e virada para os valores do passado (o poder e o estatuto primeiro que tudo, primeiro mesmo que a cooperação internacional) deve contudo ser matizado pela constatação da habilidade e do oportunismo desta diplomacia. […]
• Mais fundamentalmente, as relações entre os dois países [Rússia e Estados Unidos] aparecem atingidas seriamente pelo seu carácter dissimétrico: a relação com os Estados Unidos é uma prioridade para os Russos, mas a inversa já deixou de ser verdadeira (a China é agora a prioridade americana), para grande incómodo dos russos desejosos estes de estabelecer uma relação “igualitária”.
• De facto, de uma forma geral, não parece que este novo eixo [relações russas com os países emergentes] mude radicalmente as prioridades russas. Para além de que as realizações obtidas permanecem bastante limitadas (ver infra), o objectivo principal parece sobretudo o de fazer contrapeso às relações, frequentemente difíceis, com os Estados Unidos e a Europa.
• Sem mesmo estar a recordar os precedentes os conflitos em torno do gás entre a Rússia e a Ucrânia, o desenrolar da presente crise ucraniana – com as fortes pressões económicas exercidas pela Rússia para que a Ucrânia não assine esse tratado de associação com a União europeia, depois “o cheque” russo de 15 mil milhões de dólares (sob a forma de empréstimos) anunciado o 17 de Dezembro de 2013 em contrapartida – tudo confirma que a vizinhança imediata da Rússia, ou seja, as antigas repúblicas soviéticas, constituem uma prioridade da sua política estrangeira, e é uma prioridade essencial e constante. […
• Esta prioridade é também a consequência de realidades objectivas, que têm a ver com o grau de integração que existia na URSS: as migrações internas eram consideráveis, as fronteiras administrativas não tinham muitas vezes sentido e a economia das diferentes repúblicas era integrada totalmente.
• Por certas razões, [a Ucrânia] deveria fazer parte dos Estados que permaneceram muito próximos da Rússia: as relações históricas são muito antigas, dado que Kiev foi a capital do primeiro Estado russo na alta Idade Média ; o ucraniano é uma língua eslava e há além disso, facto importante, existe uma minoria de dimensão já significativa de língua russa, as economias estão muito interligadas e a Ucrânia, que não tem a chance de dispor de jazidas de hidrocarbonetos e cuja economia é pouco competitiva, tem necessidade das trocas comerciais com a Rússia. A Rússia permanece com efeito o primeiro mercado das exportações ucranianas, constituídas principalmente de produtos metalúrgicos e agrícolas, e, se nos colocarmos do lado do ponto de vista russo, a Ucrânia é o terceiro fornecedor externo da Rússia.
Contudo, a Ucrânia tem também uma velha tradição nacionalista, que se desenvolveu contra o Império russo a partir do século XIX. Além do mais, a sua parte ocidental (a região de Lviv) tem relações históricas e culturais muito mais ténues com a Rússia, uma fez que foi anexada à URSS apenas em 1945, depois de ter sido polaca, austríaca, seguidamente outra vez polaca; aí a população é de tradição católico-uniata.
Não é por conseguinte surpreendente que a vida política da Ucrânia tornada independente seja dominada por uma confrontação, frequentemente violenta, entre pró-russos e pró-ocidentais, com uma dimensão geográfica muito nítida (Ucrânia do oeste contra Ucrânia do leste e o Sul – aquando das eleições de 2004 que seguiram a Revolução cor de laranja, o candidato “pró-ocidental” Viktor Ioutchenko obteve mais de 80 % dos sufrágios na maior parte das regiões do oeste do país, enquanto o seu adversário Viktor Ianoukovitch obtinha igualmente mais de 80 % dos votos em várias regiões do leste e o Sul), ainda que esta apresentação é necessariamente simplificadora.
[A União Eurasiática] uma construção manifestamente inspirada da construção europeia
Esta construção em curso distingue-se da Comunidade eurasiática que a precedeu por se terem criadas instituições comuns e uma bastante larga integração das políticas económicas. […] Será então que no estado actual, a União eurasiática em construção não vai pretender desenvolver uma política estrangeira ou de segurança comum (este último papel a caber ao OTSC supracitado)? Também não se apresenta, ao contrário da União europeia, como um espaço que garante os direitos e liberdades dos seus cidadãos e onde a adesão é apresentada às condicionalidades políticas. […]
Seja como for (cepticismo dos peritos), os relatores observam mesmo assim que a construção da União eurasiática parece, de momento, um processo mais sério e mais voluntarioso que as tentativas comparáveis precedentes no espaço pós-soviético: tem-se, pela primeira vez, verdadeiras instituições comuns, confiadas à líderes políticos de bom nível, e uma harmonização das legislações.
O sucesso político do processo dependerá da capacidade da Rússia em evitar fazer desta estrutura abertamente um instrumento e um símbolo do seu predomínio regional. Quanto ao seu sucesso económico, este implica que a União não se torne para os seus membros um espaço onde se pensa estar ao abrigo da concorrência internacional – dispensando-os da obrigação de modernizarem as suas economias –, tanto quanto seria um espaço muito apertado. A pertença da Rússia à OMC limita felizmente este risco.
É admitido geralmente que as autoridades russas privilegiam as relações bilaterais com os Estados europeus em particular com a União europeia, por diversas razões sobre as quais voltaremos a seguir quando analisarmos as relações entre a Rússia e a União.
Entre estas nações com as quais prefere tratar directamente, a Rússia dá claramente a prioridade à Alemanha, porque este país é de longe o seu principal parceiro económico europeu e é também um país cuja política estrangeira, muito cuidadosa e cada vez mais reticente à qualquer implicação nas crises internacionais, não lhe levanta nenhuns problemas.
• Vinte anos mais tarde, o mínimo que se possa dizer é que o entusiasmo diminui e muito. Os europeus do ocidente e do leste e os Russos não souberam rentabilizar a sua atracção mútua depois do fim da guerra fria e construir uma relação realmente tranquila ou até mesmo caminhar para uma forma de integração do continente. Continua a haver uma relação bastante fria, principalmente fundada sobre a interdependência energética, e de numerosos assuntos de bloqueio, se não mesmo de conflito aberto.
No entanto, os relatores estão convencidos, a União europeia e a Rússia têm, sobre o longo prazo, um interesse evidente em desenvolverem uma verdadeira parceria.
• Vários autores consideram que houve, depois do fim da URSS, “um grande equívoco” entre a Rússia e o Ocidente em geral.
Este equívoco incide primeiro sobre a percepção dos acontecimentos da época. A queda do muro de Berlim, depois, o fim da URSS, tudo isto foi vivido como acontecimentos miraculosos no Ocidente e nos antigos países “do bloco do leste”, mas a percepção não foi a mesma na Rússia.. Marie Mendras, no seu artigo supracitado, põe-no em epígrafe: “é importante sublinhar o desfasamento entre o vivido russo e a nossa visão ocidental dos anos de Gorbatchov e do fim do comunismo. Observamos com entusiasmo e boa consciência este período (…). Este grande equívoco entre os Russos e nós sobre o episódio fundamental da sua história recente marcará ainda durante muito tempo a nossa relação com eles (…). A sociedade russa, no conjunto, viveu muito mal os anos de 1990 e concebe-se uma hostilidade à mudança e à internacionalização, e um profundo conservadorismo”.
Marcado ao mesmo tempo pela boa consciência, pela convicção de propor o melhor modelo económico e político e a permanência de reflexos saídos do passado recente, a acção “dos vencedores” da Guerra fria nem sempre foi muito hábil e nisso parece não haver dúvidas.
• Ao mesmo tempo que oferecia à Rússia “uma parceria estratégica” ambiciosa mas às vezes nebulosa, a União europeia prosseguia o seu alargamento a leste. Em 1995, acolhia a Áustria e a Finlândia, que previamente eram obrigados à neutralidade durante a Guerra fria. Em 2004, foi a vez da maior parte dos antigos satélites da URSS na Europa central e oriental, a que se juntou em 2007 a Bulgária e a Roménia. Sobretudo, os três Estados bálticos, ex-repúblicas soviéticas, entravam também na União em 2004.
A Aliança Atlântica conhecia ao mesmo tempo a mesma extensão a leste, com duas vagas de adesões: a Polónia, a Hungria e a República Checa em 1999; a Bulgária, a Roménia, a Eslováquia, a Eslovénia e os Estados bálticos em 2004.
Para algumas das personalidades encontradas pelos relatores, estes alargamentos permitem dar conta da permanência dos reflexos da Guerra fria: era necessário conter e assim possível repelir a URSS; a mesma política foi prosseguida contra a Rússia.
• A política que visa ao recuo da Rússia – ou pelo menos percebido como tal na Rússia, quaisquer que tenham sido os objectivos ocidentais – atingiu o seu ponto culminante no início dos anos 2000: é a época do apoio ocidental “às revoluções de cor” na Geórgia e Ucrânia – que levavam ao poder personalidades pró-ocidentais e hostis à Rússia – e da implantação de bases militares americanas nas várias ex- repúblicas soviéticas da Ásia central.
É apenas em 2008 que se pode notar uma nítida mudança neste movimento, relativamente em particular ao alargamento da OTAN: na cimeira desta organização em Bucareste, em Abril, sob a pressão da França e da Alemanha, era decidido não atribuir imediatamente à Ucrânia e a Geórgia o estatuto de candidato que eles pediam. Alguns meses mais tarde, a guerra russo-georgiana de Agosto de 2008 demonstrava que nenhum país ocidental estava pronto para uma confrontação militar directa com a Rússia para defender a Geórgia. De facto, a adesão à OTAN da Ucrânia e a Geórgia deixou assim de estar na ordem do dia.
Se esta “política de recuo” foi sem dúvida um facto este deveu-se aos Estados Unidos dirigidos então pelo presidente George Bush, à OTAN e a certos países europeus, e a União europeia como tal também tomou parte neste recuo.