TRÊS CONTOS BRASILEIROS – RACHEL GUTIÉRREZ NA SPA II

Continuamos com a segunda parte da palestra com a parte relativa ao conto “O Espelho” de Machado de Assis.

 machado de assis

“Resumo os contos rapidamente:

O conto de Machado de Assis tem um subtítulo um tanto pretensioso: Esboço de uma nova teoria da alma humana.

Numa casa do morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, quatro amigos reunidos discutem questões metafísicas, enquanto um quinto cavalheiro prefere manter-se em silêncio porque não gosta de discutir. Porém, Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. Tendo a conversa enfocado a natureza da alma, Jacobina, esse era seu nome, afirmou  que não temos apenas uma alma, mas duas: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. Evoca, então, a figura de Shylock, o judeu rico de O Mercador de Veneza, cuja alma exterior eram os seus ducados, sem os quais, Shylock não existiria.  E passa a narrar uma estranha aventura de sua juventude para provar o que diz.

Aos vinte e cinco anos, recém elevado ao posto de alferes da Guarda Nacional, fato que encantou e encheu de orgulho sua pobre mas honrada família,  Jacobina fora muito festejado e, entre as homenagens dos amigos e familiares, recebeu o convite de uma tia para passar uns dias numa fazenda, onde tudo foi feito para agradá-lo, inclusive a transferência, para o quarto do ilustre hóspede, de um grande espelho antigo ( do tempo de D.João VI) que ficava na sala e era a melhor peça da mobília. Como sua mãe orgulhosa, a tia Marcolina  também passara a chamá-lo  “o meu alferes” e até os escravos diziam Senhor Alferes para cá, Senhor Alferes para lá. Machado então nos faz uma revelação dramática: foi assim que o personagem perdeu sua identidade humana para tornar-se exclusivamente alferes. O alferes eliminou o homem. Isso parece antecipar uma extraordinária passagem do capítulo sobre a má-fé de O Ser e o Nada, de  Jean-Paul Sartre, quando o filósofo descreve uma mulher cuja mão está sendo acariciada por um admirador e finge que não está se dando conta, nem sentindo nada, e deixa a mão inerte, entregue,  morta. Mais expressiva ainda é a descrição que faz de um garçom, que caminha como garçom, se move como garçom, serve e fala como garçom, representando o seu papel a ponto de confundir-se com ele, mas nós sabemos que além de garçom, ele é uma pessoa como outra qualquer, com sua vida e suas histórias. Voltemos ao conto machadiano:

Passadas algumas semanas, a tia foi chamada às pressas para atender, numa fazenda vizinha, uma filha que adoecera gravemente, e precisou entregar a sua casa e a sua fazenda aos cuidados do alferes. E os escravos que também o haviam mimado e louvado com Nhô Alferes é muito bonito e Nhô Alferes há de ser coronel, se aproveitaram da ausência daproprietária e fugiram – todos! – durante a noite em debandada, levando até mesmo os cachorros. Portanto, não mais que de repente, o alferes se encontra totalmente só e nada lhe resta a fazer senão enfrentar o silêncio e o medo e esperar  que a tia retorne ou alguém apareça. Mas durante muitos dias não apareceu ninguém .  Sua situação era mesmo assustadora.  Tentou se distrair, fazer ginástica, recitar poemas, nada adiantava. Seu desânimo foi total.   Nem sequer se olhava no espelho. E quando, ao fim de oito dias,  estando sem a farda foi se olhar, não se viu!  Só formas vagas, difusas, enevoadas, sua imagem estava literalmente desaparecendo… Pensou que ia enlouquecer.

Só tinha alívio quando se refugiava no sono. E narra aos amigos: nos  sonhos, fardava-me orgulhosamente no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes…

 Dias mais tarde, já beirando o desespero teve a ideia de passar algumas horas em frente ao espelho vestido com a farda, e procurou olhar-se ora de soslaio, ora de frente e – milagre! – o vidro reproduziu então a figura integral: nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.  E foi assim, recorrendo à farda, que ele enfrentou a solidão e o medo. O conto acaba abruptamente, quando após essa revelação, o narrador, sem se despedir, desce a escada e desaparece deixando  atônitos os seus ouvintes…”

 

(ver 1ª parte em: 

TRÊS CONTOS BRASILEIROS – RACHEL GUTIÉRREZ NA SPA

 

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