CONTOS & CRÓNICAS – O Regicídio – por António Sales

contos2 (2)

Os fabulosos irmãos Wrightformaram a sua companhia,não de teatro obviamente, e assinaram o primeiro contrato mundial para o fabrico de aeroplanos no mesmo ano de 1907 em que era eleita a primeira Comissão Municipal Republicana em Torres Vedras[1] e o governo assinava o Decreto-Lei que tornava obrigatório o descanso semanal de um dia para todo o país, que no concelho passou a ser a segunda-feira. A Vinha de Torres Vedras entendeu que esta coisa de impor o descanso por decreto era um mau princípio e classificou-o de “ditatorial”. Boa ou má a lei era monárquica, motivo suficiente para que os republicanos a contestassem na tertúlia que mantinham na livraria de Júlio Vieira, editor e director de jornais, comerciante, escritor e correspondente dos periódicos de Lisboa, regressado definitivamente da Escola de Belas Artes. Na mocidade dos seus vinte e poucos anos representava, de certo modo, a geração que substituía a do final do século XIX visto que «esteve durante cerca de 30 anos à cabeça de um grupo de intelectuais torreenses que dinamizaram o mundo da cultura na nossa região».[2]

            No “ditatorial” dia de descanso semanal que o gabinete de João Franco instituiu ia-se aos Cucos merendar à sombra dos grandes plátanos, tocava a Filarmónica no coreto do Jardim da Graça, namorava-se mais descontraído de janela ou passeando sob o olhar vigilante das mamãs e tias quando as meninas estavam casadouras. Visitavam-se amigos, faziam-se piqueniques no Choupal, andava-se de barco no Sizandro e até um grupo de entusiastas fundava o Torreense Foot-Ball Club. Nessas segundas-feiras a missa em S. Pedro era mais concorrida, a igreja enchia-se de devotos e à saída de janotas a observar «as mulheres da vila; caras agradáveis poucas, expressões duras não estúpidas nem alvares; na grande maioria cabelos castanho-escuro; cabelos pretos mais raros; algumas cabeleiras ruivas, e algumas peles sardentas. Cabelos corredios, na maioria, poucos em madeixas. Alguns olhos azuis, peles avermelhadas».[3] Não é nada lisonjeira a descrição ficando dela a impressão que as nossas conterrâneas deviam bastante à beleza. Pessoalmente, desconfio que os homens fossem mais garbosos: baixos, cabelos escuros, bigodes fartos, feições grosseiras, certa rudeza de hábitos que andava associada à sociedade no masculino. Nesse semanal dia festivo colocavam as correntes dos relógios a saírem do bolso dos coletes, mesmo os de gola para os actos mais solenes. Não dispensavam o chapéu de coco, polainas, gravata onde o alfinete marcava presença e os botões de punho na camisa a distinção. Aparava-se o bigode ou a pêra com mais cuidado, os mais novos ousavam um toque de perfume. As senhoras escolhiam os chapéus chiques para passear pela tarde ou fazerem visitas de amizade. Moldavam a elegância da silhueta à força do espartilho que rezava as últimas avé-marias da moda porque o fim dos vestidos travados anunciava-se. Luvas, bolsas de mão, botinas de pelica faziam a diferença. As crianças brincavam ao arco no Jardim da Graça vestidas com fatinhos beges ou brancos, os rapazes com calções um pouco abaixo do joelho e as meninas com saias rodadas de muitos folhos. Meias altas, botas curtas, sapatinhos sem salto, um elegante chapelinho de fitas nas raparigas e geralmente um boné para os rapazes. Ruas comerciais eram a Misericórdia, Dias Neiva ou Estrada Real, Praça D. Carlos I. Vendiam-se tules, lãs, flanelas, voiles, linhos, otomanas, sedas e cetins. A Sapataria Vieira, Chapelaria Cunha, Centro da Moda, Alfaiataria Rodrigues, Casa Estrela e os ateliers de modista constituíam a opção da burguesia. Havia sete alfaites mas também vinham outros de Lisboa fazendo-se anunciar nos jornais como os advogados ou dentistas: «Chegou ontem a esta vila o sr. Heitor d’Emarghi cirurgião dentista de Lisboa que se acha hospedado em casa do nosso amigo sr. Reis Pereira, é um dos mais considerados especialistas da capital e que vem aqui exercer por algum tempo a sua clínica».[4]

            Uma terra deste gabarito era incapaz de melhorar o infeliz destino da Rua da Corredoura onde o noctívago habitante embiocou com a falta de luz e um outro, dez anos mais tarde, queixava-se do «estado de imundice» fazendo disso eco no jornal: «A rua é a de maior trânsito e a mais porca – dizia ele e perguntava – Onde é que se viu os moradores de qualquer rua para poderem sair das suas casas (…) terem tábuas à porta? Onde é que existem valetas mais baixas que as sargetas? Onde é que existe um cano real entupido, estando a romper por vários pontos as imundícies? Onde é que existe uma vala, que recebe os dejectos, destapada e passando junto aos prédios? Onde é que se respira uma atmosfera impura?».[5] Caramba, nestas condições a Corredoura era praticamente o esgoto da vila! Mas o leitor tratava logo de invocar a pessoa do sr. padre-cónego Silva,[6] não para lhe pedir qualquer milagre mas para lhe recordar que na sua condição de presidente da Câmara nada fazia porque «não mora na rua da Corredoura, nem por ela passa quando caminha para a sua igreja». Esta infeliz via, próxima do rio, sofreu por gerações com as cheias do Sizandro que a deixavam num estado deplorável, mantendo-se na primeira linha do sacrifício e deste merecia o prémio numa paisagem urbana onde abundavam os cães vadios vagueando pelas «ruas da vila de dia ou principalmente de noite [pondo] em risco as canelas dos transeuntes». Melhores não seriam os cocheiros dos trens de aluguer que na estação do caminho-de-ferro aguardavam ilustres famílias chegadas a banhos para os Cucos e a Fonte Nova, pondo em risco a integridade física dos passageiros que disputavam muitas vezes à chapada.

Este cenário urbano, saudoso do ruralismo primário, recebe em Agosto de 1909 o rei D. Manuel II em visita oficial às festas do centenário das Guerras Peninsulares. Às oito da manhã as forças vivas, igreja, autoridades, colectividades com os estandartes e banda com os instrumentos constituem-se em cortejo até à estação para receber o rei que às nove e quarenta desce da sua carruagem acompanhado por seu tio o infante D. Afonso, figuras da corte, da polí-

tica e do exército. Vai sua majestade de automóvel ao Vimeiro (provavelmente no Dion Bouton que João Henriques dos Santos tinha comprado um ano antes) inaugurar o padrão da respectiva batalha, visita os Cucos, almoça no Casino, passeia a pé pela ruas da vila engalanadas com bandeiras, colchas, arcos decorativos e povo gritando vivas como se quisesse compensar o filho do relativo e estranho esquecimento a que votara a morte do pai.

Mágoa por D. Carlos se Torres Vedras a teve não se deu por ela, alegria pelo 5 de Outubro de 1910 foi à fartazana em toda a vila conhecido o anúncio oficial do triunfo da revolução. A tristeza de alguns foi a satisfação de muitos que percorreram as ruas manifestando-se num entusiasmado arrebatamento patriótico. «À mesma hora a que foi proclamada a República na Câmara Municipal de Lisboa, era desfraldada a bandeira republicana, do Centro Republicano desta vila, nos Paços do Concelho de Torres Vedras, ao som da Portuguesa. O entusiasmo do povo nesse momento tocou as raias do delírio, sendo ao mesmo tempo aclamado administrador do concelho o cidadão David Simões».[7]

            A República foi indiscutivelmente um movimento político popular que percorreu os grandes centros urbanos com o povo a gaivotear pelas ruas cantando, vibrando, dançando com as bandas de música e filarmónicas. Estou a vê-las, vindas do largo D. Carlos I (que amanhã, dia 8, chamar-se-á Praça da República), descendo a Dias Neiva (que virá a chamar-se Nove de Abril), tocando o novo hino no meio de uma rua cheia de gente, gritos e vivas, enquanto algumas janelas permanecem cerradas. Vai a multidão a caminho da Câmara vitoriando os rapazes do 15 de Infantaria que, impedidos de prosseguir sobre Lisboa pelo corte da via férrea, passaram da lealdade monárquica à republicana acompanhados pelos destacamentos de Lanceiros 2 e Cavalaria 4 todos “bivacados” no Campo de S. João. Festeja-se o fim da monarquia? Direi antes que festeja-se o princípio da República o que não é bem a mesma coisa em termos de esperança no progresso do país, nas expectativas de um povo pobre e atrasado, nos sentimentos de quem socialmente foi espezinhado pela monarquia e seus representantes desde que a nação nasceu. Desta vez pensa-se que será a vitória do Portugal das romarias, das feiras, dos piqueniques, do tremoço e do garrafão sobre o dos desportos elegantes, tertúlias mundanas, compadrios do paço, galantines e champagne. Pensa-se…, pensava-se… O país político manteve-se separado do país real que continuou mergulhado na indigência da pobreza e desprestígio da nação a que D. Carlos designava por “piolheira”.[8]

            Andava a festa pelas ruas quando a notícia irrompeu qual tiro de zagalote como aquele outro que um empregado do Convento dos Jesuítas, no Barro, usou para assassinar um pobre homem do campo. Maldito tiro que acabaria por desencadear a acção de uma força de cem praças de infantaria e quarenta de cavalaria, apresentando-se no colégio do Barro, «intimaram os professores e seminaristas a que por ordem do governo os acompanhassem».Foram oitenta e dois os jesuítas detidos em boa ordem e sem motivo para acusações pois de armamento nem rasto. A população da vila manteve-se no respeito com que sempre tratara os conventuais que nessa mesma noite foram metidos no comboio para Lisboa acompanhados pela tropa. De perseguições e malvadezas não constam os registos dos acontecimentos na terra salvo algumas igrejas devassadas, conventos confiscados, imagens quebradas, padres escorraçados, desavenças antigas ajustadas em confrontos de varapau, palavras azedas e destituições de cargos públicos que, no dia 8, eram republicanamente preenchidos.[9] Um mês depois, em ambiente de delírio, Machado Santos mais a sua comitiva visitavam o Asilo dos Inválidos Militares de Runa, o Centro Alexandre Braga, os Bombeiros, o Casino, a Tuna e o Grémio onde foram recebidos num vistoso ambiente decorado por bandeiras verdes e encarnadas. Filas de enternecedoras criancinhas tinham faixas verdes a traçarem os vestidos brancos. Das galerias, apinhadas, gentilíssimas senhoras lançavam flores sobre os revolucionários. Vivas, suspiros, glória! Um espectáculo! O esgotante roteiro destas vedetas republicanas acabaria no incontornável Hotel Natividade num retemperador banquete «composto por 60 talheres».

            A República é deusa de todos os louvores, amante de todas as transformações políticas e sociais. Há um proletariado emergente que altera as relações de trabalho, a igreja perde o poder que susteve pelo domínio das estruturas da sociedade desde o indivíduo à família e desta à escola. Os padres regressam à sacristia, os conventos ao segredo dos claustros, as procissões só saem à rua sob autorização administrativa. Mas o país não deixa de ser beato por isso. Blasfémia! É a palavra dos crentes militantes nas rezas do terço. Liberalizam-se os costumes, as relações. Alteram-se tradições, modificam-se hábitos de vida e, por momentos, a riqueza e o bem-estar abandonam os sinais de ostentação. As palavras democratizam-se com novas expressões da linguagem. Cai o “você” vem o “tu” da mesma maneira que na moda feminina cai o espartilho de barbas e as calças de baixo atadas nos joelhos Chegam os tailleurs, as blusas e os vestidos folgados com as saias subindo um pouco acima dos tornozelos. Uma “relaxação”, clamam os espíritos conservadores. Acontecem as primeiras reivindicações, as primeiras manifestações e exigências. A gentalha desperta e os senhores conspiram: «A talassaria do concelho de Torres Vedras, de orelhas caídas e beiço comprido, vem significar a profunda magua que lhe alanceia a alma pelo infausto e inesperado sucesso de ter afocinhado nas cercanias de Chaves, seu digno irmão Paiva Sendeiro.[10] Não se fazem convites especiaes, devido ao estado de consternação em que os talassas se acham e do qual dá inequívocas provas o formidável beiço que trazem pendente e de que desejam desfazer-se a preços baratíssimos e até mesmo de graça».[11] Chegou ao poder a canalha, desabafou Augusto B atirando o jornal sobre a mesa.

            «Esta é uma época magnífica – disse o conde de título comprado, mas por estranho que pareça era republicano – Se a monarquia fez alguma coisa foi amamentar nas tetas do orçamento a calaceira nobreza deste país. Sou obrigado a reconhecer que estávamos habituados a comer da mão do rei ou seja, do reino. Agora vamo-nos habituar a comer da mão do estado ou seja, da nação, o que vem a dar no mesmo». O conde tinha razão como em breve se verificou com as permanentes dissidências partidárias, mas ninguém da nova “nomenclatura” deixou de “comer” antes pelo contrário, “abasteceu-se” quanto pôde transformando rapidamente o país numa coutada… de caça grossa.

 

 

 

 

 

 

[1] Venerando Aspra de Matos – Republicanos em Torres Vedras – pág. 41, Edições Colibri / Câmara Municipal de Lisboa – 2003

[2] João Vieira Pimenta – Júlio Vieira, Retrato de um Historiador Torreense – Torres Cultural, nº 8, 1998.

[3] Gabriel Pereira- Notas d’Arte e Archeologia – Lisboa 1906, transcrito in Badaladas – 24 de Janeiro de 1992.

[4] A Vinha de Torres Vedras – Agosto de 1906.

[5] Carta do leitor António da Silva ao jornal A Vinha de Torres Vedras – Outubro de 1907.

[6] Em 1906 era presidente da Câmara o cónego António Francisco da Silva.

[7] Folha de Torres Vedras – 9 de Outubro de 1910.

[8] Rafael Bordalo Pinheiro contava que em Paris ouvira o rei dizer: «Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira» – Raúl Brandão in Memórias – vol. I, pág.22, ed. Círculo de Leitores, Lisboa 1991.

[9] A Comissão Republicana do Concelho foi constituída por Manuel Augusto Baptista (presidente), Manuel Coelho Cláudio Graça, José António Lisboa, Domingos Afonso, Augusto de Oliveira Martins, Joaquim Marques Trindade.

 

[10] Em Janeiro de 1919 deu-se uma sublevação monárquica no Norte e no Sul. Subjugada no Sul os monárquicos do Norte criam uma Junta Governativa do Reino chefiada por Paiva Couceiro. Este movimento ficou conhecido como a “Monarquia do Norte”.

[11] A prôa dos talassas e a basófia dos paivantes – Local na 1ª página em forma de participação necrológica, com barras a negro e uma cruz – Folha de Torres Vedras – 14 de Julho de1912.

Leave a Reply