MULTIPLICADOR PELA ÓTICA DA DESPESA, por BILL MITCHELL

Temaseconomia1

Selecção de Júlio Marques Mota. Tradução e revisão de Flávio Nunes e Júlio Marques Mota.

Multiplicador pela Ótica da Despesa

 

Por Bill Mitchell

Publicado a 28 de Dezembro de 2009

Parte III

(CONTINUAÇÃO)

A atual controvérsia

Em Janeiro de 2009, Christina Romer e Jared Bernstein, economista-chefe do Presidente e do vice-presidente dos Estados Unidos respectivamente, publicaram um artigo que se expunha parte da estratégia orçamental da administração Obama, intitulado – The Job Impact of the American Recovery and Reinvestment Program

Dizem-nos eles: “ Quanto aos efeitos sobre o PIB resultantes do pacote de medidas para a  recuperação, começamos por calcular os multiplicadores no que respeita aos aumentos na despesa pública e aos cortes nos impostos, de acordo com o modelo de uma empresa privada líder na previsão económica e com o modelo utilizado pelo Federal Reserve System (Fed) para a economia americana.

Os dois conjuntos de multiplicadores são semelhantes e são amplamente consonantes com outras estimativas. Porém, consideramos que os multiplicadores no caso em que a taxa de juro dos fundos federais permanece constante, ao invés do caso usual onde o Fed sobe a taxa dos fundos em resposta à expansão fiscal argumentando que existe uma probabilidade elevada de que a taxa dos fundos se venha a situar no futuro perto de seu limite inferior, ou seja, de zero.”

Contudo, precedentemente, sugeriram um modelo de estimativas privado, que passamos a discutir.

Modelizam os efeitos sobre o PIB (rendimentos) assente num estímulo permanente de 1% do PIB recorrendo a uma “injeção” de despesa pública e/ou corte nos imposto equivalente a 1% do PIB. Os dois multiplicadores estimados foram de 1,55 para as despesas públicas e de 0,98 para cortes nos impostos, valores que são consistentes com a abordagem usual.

Portanto, se G aumenta em 1% do PIB o aumento total no PIB é de 1,55% após 16 períodos de ajustamento. Os autores citados utilizaram estes cálculos para estimarem também o número de empregos que iria gerar o pacote de estímulos da administração Obama.

Face ao exposto, Paul Krugman comentou o relatório, em Janeiro, logo depois de ter sido publicado, proferindo:

“ (…) as estimativas parecem estar muito perto dos valores que eu próprio obtive. Porém, note-se que eu fiz estimativas do efeito médio para o período 2009-2010, enquanto eles fazem estimativas dos efeitos no quarto trimestre de 2010 (4ºT2010), que é o período aproximado aquando se estima que o plano tenha o seu efeito máximo. Os autores dizem que o plano reduziria o desemprego em cerca de 2 p.p., já a meu ver ficaria pelos 1.7 p.p., todavia, a estimativa dos autores pode actualmente ser um pouco mais pessimista do que a minha. Segundo eles, o plano levaria a um aumento de 3.7% do PIB, mas isto seria o seu valor máximo. Julgo que se cifrará em média à volta de 2,5% ou mais em 2 anos, note-se, que novamente não há aqui muita diferença.”

De qualquer forma, os multiplicadores utilizados por Romer & Bernstein são razoáveis, mesmo sabendo que o método utilizado assente no modelo do FRB/US foi para responder à situação actual, como o veremos mais abaixo.

Em Setembro de 2009, o BCE publicou um artigo, New Keynesian versus Old Keynesian Government Spending Multipliers, escrito pelos mais notórios economistas opositores ao uso de políticas orçamentais direcionadas para a retoma económica, John F. Cogan (Stanford University), Tobias Cwik (Goethe University), John B. Taylor (Stanford University) e Volker Wieland (University of Frankfurt).

Este artigo, publicado pelo BCE, afirma que se utilizar um modelo mais robusto, mas “tipicamente um modelo actual dos novos-keynesianos ” estimam que “o impacto provável sobre o PIB das medidas de estímulo fiscal” será “apenas de 1/6 das estimativas apresentadas por Romer & Bernstein”. Por outras palavras, sem dúvida um efeito residual.

O desacordo é resumido pela seguinte Figura I, que se apresenta em baixo, reproduzida no já citado artigo publicado pelo BCE, Figura 1 da página 7, onde se descreve o modelo de Taylor (1993) como sendo ” um modelo de expectativas racionais com escalonamento de preços e de salários, portanto, poderia ser descrito como um “novo modelo keynesiano”. Parafraseando os clássicos, “um deles não pode estar correcto”.

Bill Mitchell - III

Figura I) Impacto estimado no PIB de um aumento permanente dos gastos públicos de 1% do PIB

As observações expostas no mencionado artigo, publicado pelo BCE, acerca das diferenças entre Romer & Bernstein (2009) e Taylor (1993) são:

“Talvez a diferença mais notória se prenda no ponto em que as despesas públicas mais elevadas se mantém a somar em termos de PIB “tanto quanto os olhos podem ver”, enquanto no outro caso, o efeito sobre o PIB diminui tanto quanto as componentes não-governamentais são preteridas pelos gastos do governo.”

Face ao exposto, quase que se advinha aonde vai parar o debate. A hipótese do efeito crowding-out está largamente dependente do que ocorre nos mercados monetários como resultado do pacote de estímulo.

Tentando ganhar uma mais elevada autoridade, o texto publicado pelo BCE utiliza o “modelo de Smets-Wouters” o qual eles alegam ser:

“ (…) representativo do pensamento actual em macroeconomia. Foi recentemente publicado na American Economic Review e, é um dos mais conhecidos do conjunto dos modelos dos “novos keynesianos” utilizado em estimativas macroeconómicas. O modelo de Smets-Wouters foi destacado por Michael Woodford “como um dos principais modelos no seu estudo sobre os consensos actuais em macroeconomia”.

O termo “novos keynesianos” é usado com o intuito de indicar que os modelos assentam nas expectativas face ao futuro, ou seja, trata-se de expectativas racionais, expectativas dos indivíduos e das empresas, que na qual existe uma certa forma de rigidez de preços, com um desfasamento entre variação dos preço ou na configuração dos salários. O termo também é utilizado para contrastar com os modelos dos “velhos keynesianos” modelos estes construídos sem ter em conta as expectativas racionais referidas, portanto os “novos keynesianos” estão, no plano teórico, em confronto com o trabalho realizado por Romer & Bernstein.

Os modelos dos “novos keynesianos” são comummente ensinados nos cursos de  pós-graduação, mestrados e doutoramentos  porque assumem que as expectativas e os comportamento microeconómicos das pessoas mudam ao longo do tempo como resposta às intervenções políticas, sendo inclusive estes estimados empiricamente e com ajustamento dos dados. Portanto, são vistos como sendo mais adequados para avaliação das decisões de política económica, dado que, na avaliação dos efeitos das acções governamentais na economia, é importante ter em conta como é que as famílias e as empresas ajustam as suas decisões de gastos quando as suas expectativas sobre a futura política governamental analogamente muda.”

Brevemente regressaremos a esta temática, aos modelos dos “novos keynesianos”. Todavia, a pretensão de que Romer & Bernstein utilizaram os modelos dos “velhos keynesianos” portanto, sem ter em linha de conta as expectativas racionais, é claramente falsa. O Federal Reserve FRB /US dificilmente é uma abordagem à velha maneira dos keynesianos,  ou seja dificilmente pode ser vista como “old fashioned“.

Para aqueles que se inclinam para as questões técnicas podem ler sobre as características destes modelos o resumo no citado trabalho. Porém, se está interessado nas estruturas desses tipos de modelos macroeconómicos, não o aconselhamos, todavia, se alguém o  ler, imediatamente verifica que os desenvolvimentos notáveis da FRB / U.S. incluem:

(…) maior ênfase na modelização das expectativas, especialmente a hipótese de que as expectativas são racionais ou consistentes com resultados de diversos modelos; uma utilização mais extensiva da teoria de optimização dinâmica para caracterizar respostas dos agregados familiares e empresas a choques; expansão dos tipos de modelos, em geral, usados para incluir um teórico vector de autoregressões (VARs) e modelos de equilíbrio geral, teoricamente baseados nos ciclos de negócios; desenvolvimento de novas técnicas estatísticas para estimativa de relações de longo prazo entre as séries de tendências e para testar o desempenho das equações.

Para os leitores não familiarizados com este tipo de linguagem, esta descrição significa que a estrutura do modelo é, na verdade, muito moderna em termos dos desenvolvimentos mais recentes na literatura sobre modelização e em que os agentes são considerados como tendo expectativas racionais.

Em síntese, o modelo funciona mais ou menos desta forma no contexto de um aumento nas despesas públicas: supondo-se que o nível de despesas públicas permanentemente aumenta em 1% do PIB (como o fazem Romer & Bernstein), o modelo FRB /US normalmente prevê um aumento imediato do PIB real em 1%, como na história do multiplicador pela ótica da despesa. No entanto, porque todos os agentes (famílias e empresas) na economia têm expectativas racionais (isto é, em média prevêem corretamente o futuro), as taxas de juros a longo prazo aumentam e geram efeitos de crowding out (de deslocamento), sobre a despesa privada e o declínio das exportações. Este é o típico fenómeno de crowding out na história de todos os modelos utilizados pelos neoliberais. Portanto, não muito tempo depois do aumento do rendimento real, as altas taxas de juros anulam o estímulo à economia e o multiplicador da despesa tende para zero.

A este respeito, o vice-presidente do Fed, Donald L. Kohn, observou:

“ (…) se os participantes do mercado financeiro prevêem que a taxa dos fundos federais permanecerá em zero para um apreciável período de tempo após o aumento de G, o multiplicador orçamental nas simulações de curto prazo sobe para 1,3 por algum tempo. As simulações sobre os modelos indicam também que o multiplicador de despesa pública pode aumentar ainda mais – para cerca de 2 – se o estímulo fiscal  esperado for temporária e, não ultrapassando o período em que a política monetária mantém as taxas de juros de curto prazo no limite inferior a serem vizinhas de zero.”

Esses impactos ocorrem porque as taxas de juros de longo prazo estão condicionadas pela configuração da taxa pretendida pelo banco central (a taxa dos fundos federais) e então não há nenhuma situação de crowding out provocada por esta via. Além disso, se o estímulo é temporário, os requisitos de financiamento dos défices são vistos como sendo analogamente temporários, logo os agentes futuramente não consideraram  que haja compressões nos mercados de capitais.

Este último cenário é aproximadamente aquilo que Romer & Bernstein assumiram na sua modelização (embora tenham considerado o aumento das despesas como sendo permanente) o que reduz o multiplicador abaixo de 2 tendendo para 1,5.

Note-se que a estrutura teórica incorporada nesses modelos são uma insensatez e não reflectem de modo nenhum a forma como funciona realmente o moderno sistema monetário. Mas a questão importante é que a crítica do BCE a estes modelos como sendo, de alguma forma, uma “velha abordagem keynesiana” que fora substituída pela feitiçaria dos “novos keynesianos”, é completamente infundada, completamente falsa. Face ao exposto, o artigo publicado pelo BCE não pode ser encarado como  uma alternativa credível.

Não nos causa, portanto, nenhuma surpresa quando nos apercebemos que eles “cozinham” um resultado diferente. A Tabela II) que se segue, retirada da página 12 do já supramencionado artigo do BCE, mostra a diferença ente as simulações feitas por Romer & Bernstein e a modelização feita pelo BCE.

Como é que o BCE explica esta brutal diferença?

Bill Mitchell - IV

Tabela II) Diferença entre as simulações feitas por Romer & Bernstein e a modelização do BCE

No documento do BCE, mais especificamente na página 12, concluiu-se:

“A nossa hipótese é de que, a partir do 1ºT 2009, as pessoas esperam que o acréscimo da despesa feita pelo governo continue a ser feita, e de modo permanente, (análogo ao trabalho de Romer & Bernstein), e que o aumento da despesa seja inicialmente financiado pela dívida. O modelo de Smets-Wouters pressupõe que qualquer aumento da dívida utilizado para financiar as despesas públicas é pago com juros, conduzindo a uma subida futura dos impostos. Consideramos, ainda, que estes impostos são pagos de uma só vez (lump sum) não afetando desta forma os incentivos ao trabalho, à poupança ou ao investimento. Não obstante levam a que os rendimentos pós-impostos futuramente sofram uma queda, portanto, assim como no caso da riqueza. Contudo, repare-se, se tivermos presente os incentivos destes efeitos, então o aumento da despesa pública, eventualmente, levaria a uma redução  do PIB real. Daí, a nossa hipótese poder estar errada, ou seja, poderá estar a superestimar a dimensão do impacto das despesas públicas sobre o PIB real.”O principal elemento impulsionador do reduzido valor do multiplicador (em algumas simulações reivindica-se mesmo que há um multiplicador negativo – ou seja, o aumento da despesa pública faz diminuir o PIB, destrói rendimentos) é a visão do futuro das famílias e das empresas que conduzem a uma alteração das expectativas e do comportamento em resposta direta às novas iniciativas da política orçamental. Neste caso, alega-se que todos os agentes sabem que um cêntimo hoje é o mesmo cêntimo que se irá perder perde amanhã devido à tributação mais elevada.

Nesse sentido, quanto mais elevado for a despesa pública, assim como a dívida, é notória a reação da população, pois têm noção que terão de a pagar no futuro através de impostos mais elevados. Então estes passam de imediato a reduzir o seu consumo presente com o intuito de realizar uma poupança de forma a conseguirem pagar os impostos mais elevados no futuro. O efeito negativo da riqueza é muito forte de acordo com o modelo Smets-Wouters.

Ora, assim sendo, tudo isto acontece porque há uma restrição orçamental intertemporal assumida pelo governo, em que este recorre a um aumento da tributação para saldar o empréstimo, o que colide com a riqueza das famílias, recorrendo estas a uma redução no seu consumo de forma a pagar esse aumento na tributação.

Todavia, há também um efeito de crowding out assumido através das altas taxas de juros decorrentes da emissão de dívida.

Esta questão é abordada na página 17 do já referido artigo:

“No modelo Smets-Wouters, há também um forte efeito de crowing out ao nível do investimento. Portanto, de acordo com o modelo de Smets-Wouters, tanto o consumo como o investimento caiem como proporção do PIB no 1º ano. Esse efeito negativo é compensado, conforme se mostra na Figura I acima, pelo aumento da despesa pública no 1º ano mas, leva a que o multiplicador se situe abaixo da unidade, e isto desde o início.”

Assim, a despesa pública conduz a uma variação da taxa de juro que por sua vez leva à captação da escassa poupança conduzindo desta forma é uma queda no nível de investimento.

(continua)

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¹ Nota: no anexo nº1 do referido artigo, a partir da página 12, é possível visualizar a metodologia utilizada pelos autores no que respeita aos multiplicadores.

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Para ler a Parte II deste texto de Bill Mitchell, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

MULTIPLICADOR PELA ÓTICA DA DESPESA, por BILL MITCHELL

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