Falar de Guernika por más razões – por António Gomes Marques

Em Maio de 2011 visitámos Gernika pela primeira vez e, aproveitando o facto, escrevemos para o blogue «estrolabio» um texto a que demos o título de «Gernika, por fim!». Escrevemos naquele texto sobre Gernika e, como não poderia deixar de ser, sobre a sua completa destruição e também discorremos um pouco sobre a fantástica história do País Basco e do seu povo, do séc. XIV aos nossos dias, de que transcrevemos uma pequena parte:

“O bombardeamento dos nazis, pela Legião Condor, iniciado às 16H45 de 26 de Abril de 1937, tornou Gernika universalmente célebre, celebridade reforçada depois pelo quadro de Pablo Picasso, hoje exposto no Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid.

O quadro de Picasso, em cores branco, preto e várias tonalidades de cinza, mostra bem o que terá sido o desespero da população de Gernika.

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Gernika era uma pequena cidade basca sem qualquer valor estratégico. Em menos de 3 horas, a aviação alemã nazi, ao serviço da causa franquista, matou 25% da população, 1,6 mil habitantes e destruiu a cidade, tornando-se no primeiro objectivo civil e no primeiro banho de sangue de uma população indefesa, reunida para as suas habituais compras em dia de feira, prelúdio do que viriam a ser os bombardeamentos de grandes cidades na II Guerra Mundial.

Mas a cidade tem o seu símbolo não menos famoso e que tem acompanhado a história do País Basco: a Árvore de Gernika (Garnikako Arbola).

A Árvore de Gernika é o símbolo mais universal dos bascos. Escreve Mario Onaindia Natxiondo, no seu livro «Guía para orientarse en el Laberinto Vasco» [Ediciones Temas de Hoy, S. A. (T. H.), Madrid, 2000]: «Apesar de os bascos praticarem o estranho coquetismo de fazer alarde de que, em política, não se põem de acordo sobre nada, especialmente se é substancial, a árvore de Gernika goza da rara virtude de haver ganho o respeito se não mesmo a veneração não só de todas as ideologias do semicírculo parlamentar basco (algo realmente meritório), mas também de todas as ideologias europeias.»

Símbolo das liberdades bascas, a Árvore de Gernika, é um carvalho plantado em frente da Casa de Juntas de Gernika (Gernikako Batzarretxea), sob a qual o Senhor de Biscaia jurava respeitar as liberdades biscaínas, os Foros de Biscaia. Na actualidade, é ali que o «Lehendakari» do País Basco faz o seu juramento.”

Agora que os conflitos no País Basco se encaminhavam para uma forma de luta mais de acordo com as conquistas democráticas, incluindo a própria ETA, a que não será alheio o êxito do novo partido Bildu, que congregou forças do Batasuna (ou os seus herdeiros), o Euska Alkartasuna (EA) e a Alternativa (os dissidentes dos comunistas bascos), partido este que terá retirado muitos votantes ao PNV e mesmo ao Partido Socialista, chega-me uma notícia do Publico.es, do passado dia 23 de Agosto, enviada por um amigo, que não pode deixar de nos causar profunda preocupação ou indignação mas já não surpresa, como adiante tentaremos explicar. O título da notícia é o que de seguida se reproduz:

«Una asociación ultra homenajea a la aviación nazi que bombardeó Gernika»

Conta-se na notícia que a homenagem foi promovida pela associação ultradireitista Tercios de Aguilar, de Aguilar de Campoo, cujo «Ayuntamiento» está nas mãos do PP, o qual, apesar da associação ultradireitista a ter convocado a partir de 10 de Agosto no seu blogue, não proibiu a manifestação de homenagem e a própria Guarda Civil veio mesmo a afirmar tê-la autorizado. Os elementos da Legião Condor, que destruíram Gernika, como abaixo se mostra, são classificados como «valientes voluntários alemanes», estendendo-se o «tradicional acto-homenaje» aos combatentes fascistas de Franco, apelidados de «nuestros héroes, mártires y caídos nacionales durante la Guerra Civil española»

Em 25 de Abril de 2012, véspera do 75.º aniversário do bombardeamento, o alcaide de Gernika, José Maria Gorroño, do Bildu, dirigiu-se ao Governo de Espanha reivindicando que este reconhecesse que a ordem para o bombardeamento de Gernika foi dada por Franco. Reclamou também, mais uma vez, que o quadro de Picasso, «Guernika», que vimos pela primeira vez num anexo do Museu do Prado, após a restauração da democracia em Espanha, fosse transferido para a cidade de Gernika.

O Governo de Madrid não acedeu a nenhuma das reivindicações, no mínimo seguindo o exemplo da Alemanha que, no 50.º aniversário do bombardeamento (1977), enviou uma carta ao «Ayuntamiento de Gernika» manifestando o seu sentimento de pesar pelo ataque e, em simultâneo, reconhecendo que o mesmo tinha sido efectuado pela Legião Condor.

Não há que espantar com a atitude do Governo de Espanha nem sequer com a manifestação fascista da associação Tercios de Aguilar. Recuemos um pouco na história contemporânea e apontemos alguns factos, sem ser exaustivo e sem preocupações de ordem cronológica, onde penso podermos verificar que o objectivo, sobretudo após a derrocada da União Soviética, é a instalação de um regime onde a democracia seja apenas formal, onde só quem tem dinheiro usufrui de liberdade(1). Poderíamos começar por falar do bloqueio capitalista à União Soviética após a Revolução de Outubro, principal aliado de Estaline na implantação da barbárie que destruiria a possibilidade de construir o Homem Novo que o socialismo havia prometido ou, saltando uns bons anos, lembrar a acção do par Thatcher/Reagan, pais da «revolução» conservadora dos anos 80 do século passado, dando campo livre ao capitalismo, iniciando a destruição do estado social construído a partir do fim da II Guerra Mundial, diminuindo a presença do Estado o mais possível, privatizando com a justificação de que só assim se tornavam os cidadãos proprietários, comprando apartamentos e acções das empresas cotadas na bolsa. Agora sim, o capitalismo popular passaria a ser uma realidade graças à chamada «revolução» conservadora, destruindo também o conceito que da palavra revolução se tinha até então, o progresso conquistado nos usos e costumes teria de ser destruído impondo uma nova moral que não ofendesse os senhores do poder e acabando com as liberdades individuais, onde as relações sexuais se justificam tendo em vista a procriação, criando uma nova concepção de vida e de relacionamento entre os Estados, impondo o poder dos mercados que, enfim livres, regulariam com mais justiça e de forma natural graças à competição entre eles, ou seja, era a imposição do mercado autorregulado defendido por Friedrich von Hayek. Aproveita-se a fraqueza da agora Federação Russa para humilhar toda uma nação e os seus povos, de que a independência do Kosovo, proclamada em 17 de Fevereiro de 2008, foi, para os novos senhores do Mundo, a prova de que vale tudo, inclusive apoiar as máfias e outros bandos de traficantes, e assim criar um país que nunca existiu como tal. Com a chegada de Bush (filho) é também chegada a oportunidade de identificar a democracia com o mercado.

Não esqueço que àquele par se seguiu Bill Clinton, o qual se mostrou incapaz de travar esta dita «revolução», conseguindo apenas afirmar-se como mais multilateralista na política exterior e económica, deixando também como herança uma situação económica invejável ao seu sucessor. Durante os mandatos de Clinton, os teóricos do Partido Republicano foram reunindo forças e preparando a volta ao poder, nem que para isso tivessem de falsificar as eleições como de facto fizeram, preparando o terreno para o ressurgir da sociedade que preconizavam. Com a chegada do Bush (filho), um homem que não conhece o Mundo nem sequer em viagens de recreio, o plano traçado pelos chamados neoconservadores (neocons) tinha o campo aberto para ser, por fim, imposto. Os trabalhadores seriam agora recursos ao serviço do mercado. Os EUA renunciam ao Protocolo de Kioto, rejeitam o acordo para acabar com as minas antipessoais, não aceitam a legitimidade do Tribunal Penal Internacional, tomando o novo poder uma posição vincadamente unilateral, como a invasão do Iraque mostra, invasão esta, sabe-se agora, após as declarações em livro do ex-primeiro Secretário de Estado do Tesouro, Paul O’Neill, que tal invasão começou a ser planeada dez dias após a tomada de posse de Bush (filho) e tendo como objectivo primeiro engordar os cofres das empresas do próprio Bush e, especialmente, do seu Vice-Presidente Dick Cheney, …

Na Europa, entretanto, vai-se construindo uma União Europeia com a preocupação de os seus povos não serem ouvidos, impondo-se também aqui uma democracia formal (2). Os povos europeus não passam de seres com cérebros de criança que, felizmente, têm uns paizinhos simpáticos em Bruxelas para cuidar deles. Esta Europa que faz o jogo dos EUA, já com Obama, correndo a apoiar os bandos nazi-fascistas que tomam o poder na Ucrânia, dando oportunidade ao novo Czar da Rússia de mostrar que os tempos de Bóris Iéltsin acabaram, não percebendo a U. E. que, no final, vai ser a única a perder. Alguém imaginava, por exemplo, que Vladimir Putin iria consentir a instalação da NATO junto das suas fronteiras e permitir-se perder as fábricas de armamento russas que a Federação Russa possui na Ucrânia? Pobre União Europeia que tantas nulidades tens a governar-te!

Portela, 2014-09-06

 

Notas

1 – Para uma visão mais completa, recomenda-se a leitura do livro «La Mano Invisible – El gobierno del mundo», de Joaquín Estefanía (Punto de Lectura, S. L., Março de 2007), um autor infelizmente não traduzido em Portugal e que alguns portugueses conhecerão por serem leitores do «El País».

2 – Leia-se Vitorino Magalhães Godinho, nomeadamente «A Europa como Projecto», Edições Colibri, Lisboa, Setembro de 2007. Caramba, são apenas 70 páginas!

1 Comment

  1. Actos como el homenaje a la Legion Condor son una infamia. Creo que serían inconcebibles en otros países democráticos, donde, sin duda, serían además punibles. Pero, Spain is different. Muchos cadáveres de la Guerra Civil, cubiertos de tierra sin la menor dignidad, se pudren aún en las cunetas y en los que fueron campos de batalla o de vergüenza. Y quienes reivindican la memoria històrica son acusados de falta de generosidad, de no saber estar a la altura de la “necesaria” concordia ni del pacto convivencial de la Transición, ni de la generosidad necesaria para dejar atrás el pasado y centrarse en el presente y el porvenir. En cambio, los afectos a la dictadura, nostálgicos del franquismo, y, entre ellos, algún ministro de Franco, todavía vivo, como el Sr. Utrera Molina, suegro del actual ministro de Justicia, Alberto Ruiz Gallardón, pueden publicar, sin herir ningún escrúpulo histórico ni democrático entre buena parte de los defensores del “orden constitucional”, artículos laudatorios sobre el Dictador en el Web de la Fundación Francisco Franco.
    Mientras el gobierno minimiza la importancia de actos como el de Aguilar de Campoo, y los consiente sin reparos siempre que se produzcan discretamente o sin demasiada publicidad, aplica un celo exagerado hasta lo ridículo en otras situaciones mucho más propias de la pluralidad e indicadoras de la buena salud democrática de la sociedad. Dos ejemplos recientes: el ministerio de exteriores, mediante la embajada española en Holanda, ha prohibido esta misma semana la conferencia que, auspiciada por el Instituto Cervantes, el novelista catalán Albert Sánchez Piñol tenía que pronunciar en Utrecht con motivo de la presentación de la traducción holandesa de su novela “Victus” sobre la Guerra de Sucesión y los hechos del Onze de Setembre (caída de Barcelona en poder de Felipe V). Y un segundo hecho aún más reciente y especialmente hilarante: en el marco de la Festa dels Miquelets, que se celebra en Olesa de Montserrat para conmemorar el 1714, tiene lugar una representación de los hechos de armas con la intervención de una serie de figurantes disfrazados convenientemente y armados de trabucos -“els trabucaires” o disparadores de trabucos son una tradición en Cataluña presente en numerosos actos festivos y fiestas mayores de muchos pueblos, e incluso en las grandes ciudades; pues bien, la Guardia Civil se ha personado en la fiesta para pedir “el permiso de armas” a los figurantes que participaban en la representación.
    Así de ocupados están los ministerios del exterior y del interior en poner orden en Cataluña, donde los ciudadanos han decidido que quieren manifestar democráticamente, votando en una consulta sobre el derecho a decidir su futuro como país. Por eso, naturalmente, no tienen tiempo de entretenerse en minucias como ese homenaje a los ejecutores de la masacre de Gernika.
    Son manifestaciones patológicas de los males endémicos en este extremo de Europa.

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