SOBRE OS LEOPARDOS QUE QUEREM BEM SERVIR BRUXELAS – DA ITÁLIA, FALEMOS ENTÃO DE UM BOM EXEMPLAR – O DESASTRE ITALIANO, por PERRY ANDERSON

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

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O Desastre Italiano

mapa itália

Perry Anderson, The Italian Disaster*,

London Review of Books, Volume 36, Nº 10, 22 de Maio de 2014

 Parte XI

(CONTINUAÇÃO)

Depois de meses de atenção dados pelos  media , isto não deu em nada. Num bluff mais que vazio ainda, Renzi  anunciou planos para cobrir a Basílica de San Lorenzo, com a fachada em mármore que Michelangelo tinha projectado para este local, mas que nunca tinha sido feita. Isso também valia metros de cobertura na imprensa e muitas imagens na televisão, antes de ter sido posta a ridículo pelos historiadores de arte e desapareceu então de  vista.

renzi - XIVLegenda das imagens acima: Matteo Renzi on the cover of ‘Vanity Fair’, November 2013, and in Parliament before a vote of confidence, February 2014.

A partir desta altura, como figura política máxima na província, Renzi tinha vindo a construir uma rede de ligações com algumas  empresas locais. O seu principal apoiante e financiador, era  um patrão da  construção local, Marco Carrai, cujos interesses se estendiam  para lá do Atlântico e com ligações alargadas à  Opus Dei. Uma vez Renzi colocado no Palazzo Vecchio, Carrai foi encarregado de construir o lucrativo complexo de estacionamento da cidade e do aeroporto, enquanto Renzi se  instalou  sem pagar nenhuma renda num apartamento que lhe foi colocado à disposição por  Carrai – um arranjo actualmente sob investigação judicial. Três anos mais tarde  concorria  para ser o líder do PD, com a sua campanha a ser financiada até  à  quantia de €600.000 pela Fundação Big Bang e  com muitos dos  doadores a permaneceram secretos, Renzi não se poupou a despesas.  Uma das maiores contribuições veio do director de um  hedge fund, Davide Serra, cujo  Algebris Investments inclui um esconderijo  nas Ilhas Cayman. Residente em Londres, Serra tornou-se um ponto de ligação entre  Renzi  e o mais amplo mundo  da finança, onde um banquete em honra do candidato reuniu a elite financeira de Milão  durante a campanha. Em Florença, o Instituto municipal de poupança tem – sem dúvida, por  pura coincidência – investido nos  títulos Algebris.  A noiva do Carrai, entretanto, uma graduada em  filosofia de 26 anos, tornou-se  uma das responsáveis  pela  exposição principal deste ano em Florença, um golpe de publicidade a promover as  fictícias ligações  entre Michelangelo e Jackson Pollock com  um custo de €375.000. Um dos slogans mais populares do Renzi é a sua expressão  reclamando um país onde “ se arranje emprego pelo que se conhece e não por causa de quem se conhece”.

Os negócios podem dar origem a que se desfrute   de uma troca de favores a nível municipal, mas é sobretudo a um nível mais geral que a  mensagem ideológica de Renzi  lhe fez ganhar os apoios da gente de  muito dinheiro. Reclamando que a gente mais velha da classe política pertencente ao  PD fosse atirada  para o armazém da sucata política  funcionou  bem com a imprensa e com a população, com esta fortemente   desiludida com a classe política. Para os banqueiros e industriais, o seu apelo  foi incisivamente mais económico. O enorme mal-estar da Itália provinha de um estado perdulário e das  obstruções corporativistas  feitas  sobre os mercados, nomeadamente – se não exclusivamente –  pelo comportamento altamente egoísta dos sindicatos. Os sindicatos tinham então que ser desmantelados. Liberismo – livre comércio sobre as commodities, incluindo terra e trabalho – era uma doutrina não de  direita , mas de uma esquerda  esclarecida, como a de Renzi. A palavra de ordem desta esquerda deve ser inovação, mais do que igualdade e se este último termo é, no entanto, digno de representar e de ser um ideal, só o pode ser, se devidamente compreendido como expressando uma carreira aberta ao talento e  acima de tudo,  empreendedor. Blair foi o líder que melhor compreendeu tudo isto, estabelecendo o  exemplo inspirador do tipo de política de que a Itália tinha urgentemente  necessidade.

O culto de  Renzi por  Blair reflecte, em certo sentido, as limitações provinciais da sua cultura: Renzi  claramente  desconhece  que o objecto de sua admiração mal ousa mostrar a cara em público no país que ele governou. Mas, por  outro lado, serviu como um cartão de visita  para o maior amigo de Blair na Itália. Contactos informais com o centro-direita já existiam desde o início da subida do Renzi em Florença, onde a sua vitória sobre um candidato bem mais conhecido  nas eleições primárias do  PD  em que não se exigia nenhum  registo no  partido é muitas vezes atribuída a votos daí resultantes. À volta deste período, estava em boas relações  com um banqueiro florentino, Denis Verdini, cujo Crédito Cooperativo Fiorentino entraria em colapso no  meio de  acusações de crime formuladas contra ele, mas em que, como uma figura de liderança na organização de Berlusconi na Toscana, poderia oportunamente tornar-se  um interlocutor fundamental do centro-direita. Enquanto Renzi era o  prefeito, viajou  para a villa de Berlusconi em Arcore, para  com ele discretamente  jantar, uma peregrinação  tabu na altura  para o  PD e que só mais tarde foi  revelada. Não apenas um gosto em comum com  Blair e a apreciação do valor do empresário terão, no entanto, juntado Renzi e Berlusconi. Este último,  frequentemente explicou que  vê em Renzi, uma versão mais jovem de si mesmo: o mesmo talento, a mesma audácia e o mesmo encanto com o qual ele tinha cativado a nação, vinte anos antes.  Claramente, quanto ao estilo político os dois homens na verdade têm muito em comum. Primeiro que tudo, uma intocável  autoconfiança na  sua capacidade  única em  conduzir o país. A personalização de Berlusconi na política é lendária.  A projecção de Renzi de si mesmo é dada  num registo diferente, mas combina com o anterior.  Colocado em  cartazes ao longo da rota da sua viagem pela Itália, o slogan da sua campanha para ganhar o comando do seu partido dispensa  qualquer agenda para isso, para além da sua própria pessoa. Nestes cartazes, simplesmente lia-se:  ‘Matteo Renzi agora!’ Como com o Sílvio, isto  foi suficiente.

Tal auto-confiança coloca qualquer  um acima de quaisquer  dúvidas ou escrúpulos dos  seus pares. As suas formas de crueldade são tacticamente diferentes. Mas os políticos partilham uma qualidade a de não hesitarem perante nada, stop-at-nothing, cuja justificação vem de duas convicções : que somente se pode realizar o que em cada  momento se exige e que eles somente gozam de um bom  relacionamento com os eleitores – não com todos os italianos, mas os melhores deles, os que formam a maioria da nação – o que confere ao que eles fazem uma legitimidade incontestável. Ambos  também, é claro, se tornam proeminentes  em conjunturas de crise, prometendo ao país um novo começo, uma vez que  a ordem política tenha  caído em descrédito generalizado.

Estes são pois os paralelos óbvios. Existem também diferenças óbvias. Destas, são quatro as  mais significativas. Berlusconi entrou para a política, já à frente  de um império de negócios, utilizando a  sua vasta fortuna para ganhar um poder com o qual  poderia proteger os seus interesses. Ele estava a  aproximar-se dos  sessenta quando ele assim o fez. O seu  principal instrumento  para ganhar e reter o poder era o controle da televisão como um meio para esse efeito. As suas capacidades  em comunicação eram as de um verdadeiro  profissional do pequeno ecrã que conhece muito bem os seus rituais e os recursos e   quando como   comerciante e proprietário dos canais se dirigia à Nação, aparecia  sempre numa forma cuidadosamente encenada.

Renzi, pelo contrário, é uma criatura da pura política.  A sua ascensão pode ter deixado uma fraca lufada de fedor atrás dele  – pecunia non olet dificilmente se aplica aqui. Mas fundos, duvidosos  ou acima da lei, foi só um meio para a sua ambição: a riqueza não é um fim. O objectivo é o poder. A posse do poder  – esta é a segunda maior diferença – foi alcançada  por um indivíduo, na casa dos quarenta, não dos sessenta: uma geração mais jovem. Berlusconi baseou muito da sua atracção  inicial baseado na pretensão, não só de que ele era um estranho ao  sistema político, mas era também um homem  que  demonstrou  as suas capacidades na criação de riqueza como um gestor e um  empreendedor: ele podia fazer andar a Itália como o tinha feito, e muito bem,  com as suas estações de televisão e o seu clube de futebol.  A atracção de  Renzi está na  idade, não na  experiência. Em si-mesmo, jeunisme é um cartão banal, jogado crescentemente pelos  políticos em todos os lugares nas sociedades pós-modernas. Mas Renzi fez da sua juventude- algo muito mais do que um simples  atributo individual: fez dela a espada emblemática de um rejuvenescimento colectivo em curso, cortando através  das disfunções geriátricas do sistema político e dos seus detritos na vida económica e social em geral. Este tipo de promessa  não tem as credenciais tangíveis de sucesso material que  Berlusconi reivindicava, mas ligando-se  directamente com as frustrações de duas gerações de italianos sufocados  pela imobilidade e pela decadência da Segunda República, é verdadeiramente potente como  apelo.

(continua)

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*Ver o original em:

http://www.lrb.co.uk/v36/n10/perry-anderson/the-italian-disaster

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Para ler a parte X deste trabalho de Perry Anderson, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

http://aviagemdosargonautas.net/2014/09/17/sobre-os-leopardos-que-querem-bem-servir-bruxelas-da-italia-falemos-entao-de-um-bom-exemplar-o-desastre-italiano-por-perry-anderson-9/

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