CONTOS & CRÓNICAS – – < MAURÍCIO VILAR QUASE QUE TEM UM DIA BOM – por João Machado

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Pois meu caro amigo, reconheço que tenho andado enganado. Tenho a agradecer-lhe a enorme ajuda que me tem dado. Começo mesmo a pensar que me tem faltado tomar algumas iniciativas. Nunca imaginei que, um dia, conseguiria levar a minha mãe a lanchar com uma amiga minha, perdão, com alguém como a Maria da Luz que é muito mais do que uma simples amiga. Mas oiça bem (isto é, leia com atenção) o que lhe vou contar.

Ontem à tarde, fui à faculdade ter com a Maria da Luz, como aliás tínhamos combinado. Estivemos muito bem. Contei-lhe a conversa com a minha mãe; gostou imenso, mesmo da ideia de ir jantar lá a casa. Concordou comigo em que será melhor fazermos primeiro o lanche na faculdade. E resolvemos propor à minha mãe a terça-feira da semana que vem. Convém assim, porque na outra semana vamos ter mais uma frequência. Depois fomos a casa dela, lanchámos e, enfim, matámos saudades. Até me esqueci das horas. Quando cheguei à rua de Santo Ambrósio, já era escuro. Ia eufórico, acredite, e cheio de confiança, o que em mim, realmente, é raro. Nem o que sucedeu então me estragou o dia, até pelo contrário. Vou a subir, mesmo ao princípio da ladeira, quando dou de caras com quem? Com quem havia de ser? A Maria Antónia, claro. Mas imagine que nem fiquei preocupado, ao contrário do que é habitual. Cumprimentei-a calorosamente:

– Boa tarde, Maria Antónia. Há que tempos que não a vejo. Tem passado bem?

– Mas que bem disposto que ele anda. Isto é que é. Temos mesmo marroquina na costa.

– Cada vez mais divertida, a Maria Antónia. Que tem feito? A D. Henriqueta?

– Olhe, veja lá se passa lá por casa logo à noite. Temos umas contas atrasadas. E eu também tenho de lhe contar um assunto grave. É por causa daquele cavalheiro, o Álvaro, o irmão da Josefa.

– Outra vez? Ele continua lá na pensão? Já veio visitar a irmã?

– Pois continua. Por aqui ainda não apareceu. Deve ter medo do Bráulio. E conhece bem a Josefa, que não lhe apara os golpes. Mas é melhor falarmos logo. Tenho de ir a correr.

Ela disparou rua abaixo, o que me surpreendeu, porque sabia da repugnância que tinha em deixar sozinha a Henriqueta. Pensei que iria fazer qualquer recado, e continuei o meu caminho. Ao entrar em casa, dei com a Heloísa já um tanto nervosa. Passou-me um raspanete, já se vê:

– Que te aconteceu? Chegaste tão tarde! Eu aqui aflita…

– Desculpa, mãe. Sabes, estive a estudar com a Maria da Luz. Temos frequência daqui a duas semanas. Mas sabes o que combinei com ela? Convidar-te para lanchar na esplanada do estádio, lá ao pé da faculdade, na próxima terça-feira.

Só queria que visse o sorriso que a Heloísa fez. Pareceu-me que me olhava quase com orgulho. Animado como estava, nem me preocupei na altura com a mudança cada vez maior nas reacções da minha mãe aos meus amores. São agora dez da manhã do dia seguinte, passaram pouco mais de doze horas sobre a nossa conversa, e agora não consigo deixar de me interrogar sobre o que terá mudado nela. Começo até a sentir um certo pânico. Mas, entretanto, ela respondeu-me:

– Está muito bem, como faremos?

– Saímos depois de almoço, apanhamos o metro e encontramo-nos com a Maria da Luz na biblioteca…

Tudo sobre rodas, e rodas bem oleadas. Jantámos e a Heloísa foi à sua telenovela. Meti-me no quarto a reler os meus apontamentos, copiados quase na totalidade dos da Maria da Luz. Seria um quarto para as onze quando fui espreitar a sala: a minha mãe, dormia, muito bem recostada, a telenovela tinha acabado e agora uns tipos com ar sério comentavam um jogo de futebol que, ao que me pareceu, não tinha tido o desfecho mais agradável para dois deles. Os restantes, com ar divertido, davam umas explicações altamente complexas para o desaire do clube em questão. Baixei um pouco o som, saí silenciosamente e fui ter com a Maria Antónia.

Após uns preliminares de muito interesse, ela fez-me sentar na cama, ao lado dela, olhou para mim, e começou:

– Mauricinho, a D. Generosa está a ver que vai ter grandes problemas na pensão por causa do Álvaro. Imagine que ele não paga o quarto, toma todos os dias o pequeno almoço, sai, entra, já se meteu com uma das raparigas, que teve de lhe dar para trás, porque ele não tem dinheiro para lhe pagar, e agora faz casino da sala da pensão, onde as pequenas esperam os clientes. Junta-se ali com três outros, que ele foi buscar não se sabe onde, e é cartas até altas horas.

Foi só a partir dessa altura que o dia (era quase meia noite) me pareceu com cores menos favoráveis. Endireitei-me, respirei um pouco mais fundo e perguntei, muito suavemente:

– E a D. Generosa não o põe fora? Não lhe diz nada?

– Ela já lhe disse que ele, se não paga, tem de sair. Ele ficou a olhar para ela, não disse nada, e voltou para o quarto.

– Ela tem de ir à polícia.

– Foi o que eu lhe disse. Mas ela tem receio. A polícia conhece muito bem a pensão. A Generosa tem receio de que a acusem de explorar as raparigas. Ela não o faz. Mas é sempre complicado explicar estas situações.

– Sim, é complicado.

É complicado. O meu amigo, o que faria no meu lugar? Diga-me o que hei de fazer, numa embrulhada destas. Digo que não tenho nada a ver com o assunto? E se a Maria Antónia e amigas se atiram a mim? Se vão contar à Heloísa as minhas aventuras? Ou então à Maria da Luz?

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