BISCATES – A lista VIP e o Triunfo dos Porcos – Carlos de Matos Gomes

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O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, é uma alegoria às sociedades totalitárias – que o autor, um social-democrata, membro do Partido Trabalhista inglês, associou ao estalinismo. O desenvolvimento do capitalismo, ao conjugar a ditadura dos mercados financeiros com as extraordinárias possibilidades das novas tecnologias da informação e da manipulação de massas, fez do Triunfo dos Porcos, publicado com o título original de Animal Farm, além de uma crítica ao “socialismo real”, uma antecipação às sociedades totalitárias atuais no que resta do “Ocidente”, em que ainda consideramos viver democraticamente, porque nos são concedidas as possibilidade de falar e votar, mas sem que essas concessões alterem o statu quo. Vivemos hoje uma democracia inconsequente, em que temos os mesmos direitos dos rebanhos: podemos balir e pastar, mas o nosso destino está traçado, tosquiam-nos, ordenham-nos e no final comem-nos a carne. Somos os animais que estão na fazenda que é a quinta essência do mercado.

O episódio da lista VIP de contribuintes é um mero resultado da vitória da sociedade capitalista erguida através do Triunfo dos Porcos. A lista VIP é um dos muitos produtos gerados na Animal Farm, como os Credit Default Swaps (CDS), os hedge funds, os “papéis comerciais” do Espirito Santo. A sociedade totalitária orwelliana está aí e sabe tudo de nós e não, certamente com boas intenções. De cada vez que fazemos uma chamada telefónica, o Big Brother sabe onde estamos, o que dizemos, o que pensamos. De que cada vez que entramos numa auto-estrada, ou num banco, ou no metro, ou no comboio, ou no hospital, ou na escola, ou num bar estamos a ser seguidos. De cada vez que depositamos ou levantamos dinheiro numa máquina, ou ao balcão do banco, de cada vez que bebemos um café estamos a ser enredados numa teia onde seremos comidos. E ainda gozam connosco. A fatura da sorte é um gozo dos porcos que triunfaram: o estado totalitário está a dizer-nos na TV (a quem, ainda por cima, temos de pagar uma taxa): compraste uma embalagem de preservativos no Continente, meu malandro, está aqui na fatura. Como foste obediente, levas um carrinho que tem uns excelentes bancos para dares umas quecas na natureza. Mas tem cuidado com os mirones. Em resumo, a sociedade totalitária em que vivemos tem toda a informação sobre nós e escolhe o momento de desferir o seu golpe.

O que a lista VIP revela é o poder dos porcos em utilizar em seu exclusivo proveito a nova arma da informação. É uma luta pelo poder que se trava à volta destas listas VIP, destas bases de dados. O poder instalado quer, exige e impõe o direito de saber tudo de todos os que o sustentam. É um efectivo exercício de domínio totalitário. Mas não quer que os outros saibam dele para não se tornarem vulneráveis. A lista VIP é a sua armadura, o bunker, a trincheira, o abrigo. A lista VIP é o escudo que protege os poderosos. A tropa comum anda em campo aberto, exposta às balas e à metralha, à devassa. Os generais estão no seu castelo, na sua gruta secreta. É a típica sociedade racista: uns poucos dominam em absoluto a maioria e colocam-se ao abrigo dos perigos.

Depois da desmontagem que fez do estalinismo, o Triunfo dos Porcos revela agora (também através da lista VIP) a perversidade inerente ao capitalismo. Os poderosos querem manter os seus segredos financeiros – as actividades através das quais exercem o seu poder – a recato, defendidas. O seu negócio é o segredo. O segredo é a alma do negócio. É isto que a lista VIP quer dizer.

Por outro lado, como na sociedade dos porcos triunfantes só existe o valor do dinheiro, não há moral, os animais comuns também aprenderam a fazer pela vida e a utilizar como suas as armas dos seus senhores: a exposição dos podres dos poderosos e a sua colocação nos mercados da comunicação social, afinal o sacrário dos segredos do poder. Há uns anos, no século passado, chamava-se a esta luta, a luta de classes. Agora é competitividade e reajustamento. Mercado.

O antídoto, o contra ataque dos poderosos à devassa dos seus segredos, tem sido a típica dos demagogos: A manipulação através de uma palavra forte. A palavra mais utilizada pelos demagogos para manipular as massas, as opiniões públicas, os rebanhos é liberdade. A palavra talismã dos demagogos da nossa época e do nosso espaço civilizacional é liberdade. Uma palavra talismã tem o poder de prestigiar as palavras que dela se aproximam e desprestigiar as que se opõem ou parecem opor-se a ela. Hoje aceita-se como óbvio – o manipulador nunca demonstra nada, assume como evidente o que lhe convém – que as palavras sucesso, empreendedorismo, competitividade, individualismo estão associadas à palavra liberdade e convertem-se, por isso, numa espécie de termos talismã por aderência. No caso da defesa das listas VIP as palavras talismã são privacidade e igualdade. Os demagogos que têm passado pela Comissão da Assembleia e os demagogos que defendem o governo, enchem a boca a garantir que todos temos direito à privacidade, simplesmente, como no Triunfo dos Porcos, uns têm mais direito do que outros e uns são mais iguais do que outros e os que têm mais direitos são, como é óbvio, os que dominam os restantes.

O que este episódio da lista VIP revela é assustador, mas tem sido evocado por gente mais atenta, embora por isso mesmo pouco escutada: o totalitarismo capitalista está hoje em confronto direto com a democracia, com os conceitos de liberdade, de justiça e de igualdade, de solidariedade, de respeito. Ora, como historicamente os valores morais e éticos perdem sempre contra a ambição, a falta de escrúpulos e o vale tudo, é fácil concluir que a democracia está em riscos sérios. A lista VIP das finanças portuguesas é apenas mais um sintoma do cancro que ataca as nossas sociedades ditas de democracia liberal: o do aumento da desigualdade real com a justificação da liberdade formal.

Do que se trata, neste caso, é de resistir antes que os porcos levem para o mercado os potros filhos da égua Clover, antes que anunciem ao cavalo Boxer que será vendido para o matadouro e atirado aos cães no dia em que os músculos perderem a força.

Há que impedir o triunfo dos porcos.

Carlos de Matos Gomes

4 Comments

    1. Não percebo o medo que algumas pessoas têm de que a comunidade sabe o que cada um dos seus faz . Não é isso a transparência? Não é isso que os pais fazem com os filhos, isto é, saberem o que os filhos fazem para estarem descansados? Estas pessoas partidárias da menor transparências dos processos, deveriam morar fora dos condomínios fechados e privarem com a realidade de viverem com vizinhos que já foram condenados por pedofilia, homicídios, roubos violentos, burlas, etc. Vejam o filme “Bons rapazes” e reflictam para onde caminha uma sociedade onde a força está em quem tem dinheiro, acesso privilegiado à informação e menos escrúpulos para atingir os seus objectivos. Enfim … Opiniões

      1. Medo disto não tenho, mas tenho de morrer mal (lentamente) . Não queria ver os porcos a ganhar,só isso e não é pedir muito .

  1. para complementar o que foi dito, resta recordar a obrigatoriedade das empresas comunicarem à AT o que vendem e para quem vendem, isto traduz-se de forma real na possibilidade do bem vendido através de qualquer meio, ser de imediato penhorado caso o comprador tenha dividas às finanças, isto é: A dona Margarida de 39 anos de idade viu o esposo morrer, ainda nova e enquanto o não substitui decide comprar um massajador facial e intimo de forma a minimizar a falta de sexo. Acontece que o falecido tinha um processo de execução fiscal por dividas de imi no valor de 50 euros, as finanças revertem a divida para a viúva e no momento em que a mercadoria é expedida a repartição de finanças onde corre o processo recebe um alerta para que os funcionários se dirijam a casa da senhora e lhe cacem o vibrador. Pode parecer exagerado mas que é a realidade é. Acontece que o estado contratou empresas de outsorcing para colocar estes meios informáticos em prática, empresas essas que, por não estarem abrangidas pelo dever de sigilo podem acabar por colocar o nome da senhora nas bocas do mundo. E na AR ninguém, repito ninguém se move ou levanta a voz contra este tipo de actuação fascista.

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