SOBRE A CRISE, SOBRE O EURO, DIÁLOGO COM UM GRANDE AMIGO MEU – a propósito do envio de um texto de MICHAEL PETTIS, “A ESPANHA EM SOFRIMENTO: PORQUE É QUE DEIXAR O EURO É O MENOR DE DOIS MALES” – por JÚLIO MARQUES MOTA

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Sobre a crise, sobre o euro, diálogo com um grande amigo meu

A propósito do envio de um texto  de Michael Pettis

Olho o meu amigo, que me diz que no blog A Viagem dos Argonautas eu publico artigos muito bons mas que de todos estes não há nenhum que seja meu. Os meus, estes tresandam a esquerdismo, estes tresandam a uma vontade louca de sair do euro, estes tresandam a uma ânsia de ver sangue correr. Por isso,  detesta-os, é o que me diz. De novo, olho à velocidade a que se guia o automóvel, para uma mulher muito bonita que passa na rua. Há muita coisa bela neste mundo que Deus fez, penso. Volto a olhar para o meu amigo, tenso como tudo. E diz-me, não te vale a pena irritares com os meus argumentos. Não me intimidas!

Respondo, não respondo, questiono-me. Respondo, decidi.

Tudo tresanda a sangue, talvez tenhas razão, mas não porque eu o deseje, mas porque a realidade o vai impor, mais cedo ou mais tarde. Esta é também a opinião de um grande bloguer americano Maximus Fabius, é também a posição do antigo conselheiro do BERD, William Buiter, um homem que João Cravinho considera como um dos tipos mais inteligentes que conheceu até hoje nas Instâncias Internacionais. Ambos se interrogam porque é que o sangue não corre pelas ruas da Europa. Não faço nada mais do que comungar dessa ideia, respondi.

E continuo. Vê o que aconteceu com o caso da hepatite C. Alguém que sem medicamentos iria morrer em breve ameaçou na Assembleia da República o ministro da Saúde de que haveria de o encontrar! Três dias depois o acordo com a indústria farmacêutica estava alcançado e ele ia ter os medicamentos subvencionados. Mas nem sempre será assim. Mas se o ministro fosse morto, tudo poderia acontecer, como por exemplo, a militarização do regime e o fascismo estava aí à porta. À porta já ele está, acrescentei, mas está ainda de mãos de luvas quase que brancas. Uns salpicos de sangue apenas, umas mortes imputáveis à precariedade, à solidão de velhos uns outros e, por fim, uns suicídios imputáveis aos desmazelos funcionais dos suicidas.

Mas esse caso da ameaça ao ministro deve-se apenas ao papel da imprensa, acrescentou o meu amigo. Sem ela, nada disto era relevante.

Espantei-me e berrei: só me faltava essa. Não falar das tensões não quer dizer que elas não existam. Imagina-me um barril cheio de água. Continua a meter-lhe água dentro e à pressão. Que acontece ?

O barril rebenta, respondeu-me.

E rebenta, rebenta como, porque pontos do barril, questionei?

Imprevisível, retorquiu.

Pois é, a luta de classes é isso mesmo, imprevisível o momento, imprevisível a forma que assume, imprevisível a violência que desencadeia.

Mas achas que a saída do euro é a saída para a nossa crise? Achas, voltou a perguntar e com ar de zangado.

Não é esta a saída de que eu goste, mas será a saída possível. Se não for assim, o sangue correrá pelas ruas e será tudo imprevisível. Foi sempre assim, continuei, e não vejo porque é que não há-de voltar a ser assim. O homem não mudou, finalizei.

Mas não vês que os tempos são outros, respondeu-me. E continuou: não vês que ninguém reage? Onde estão as grandiosas manifestações de outrora? Onde está a classe operária? E andas tu a pensar em tiros, em revolução nas ruas. Diz-me lá,  se há capacidade de revolta  em que estas sempre a pensar, diz-me então.  Queres que continue? O silêncio é a regra, e falas tu em violência nas ruas, em tiros sobre um qualquer Presidente representativo na União Europeia.

Aparente-me tens razão, respondo. Olha-me, por exemplo, para as Faculdades de Economia. Sobre a crise praticamente nada. Olha-me para a Universidade Nova. A esta, passa-lhe tudo ao lado. Até o seu director nos diz na televisão que os jovens economistas não têm emprego porque não são formados pela Universidade Nova. Olha-me para a nossa Escola, olha-me para o nosso ISEG, olha-me para o seu Director do período de crise, o João Duque. Viste-lhe alguma coisa de jeito, de contundente em termos de análise de crise, de responsabilidades e de medidas contra a crise ? Nada, claro está. Olha-me para o seu actual Presidente do ISEG que até pede desculpa ao Ricardo Salgado. Parece pois que tens razão, mas não é verdade. Não podemos confundir a árvore com a floresta.  Mas de quem é que estamos a falar, digo num tom irritado. Estamos a falar daqueles  que querem ser sempre um travão na dinâmica da História, daqueles que querem sobreviver “colando-se ” aos de cima, como agarrados a uma lapa, enquanto tentam esmagar os de baixo, enquanto tentam esmagar  ou tentam  gripar o motor da história, os trabalhadores que trabalham por conta de outrem, precários cada vez mais. Assim  prestam o seu serviço de classe, servindo de escudo à classe dominante, cumprindo a  sua função nos “desequilíbrios” sociais, meu caro.

No caso das Faculdades de Economia, a crítica  assenta que nem uma luva  feita à medida. Das razões profundas da crise em que nada se tocou, antes pelo contrário, que todas elas se degradaram, nada se fala. O monetarismo, as ideias neoliberais assentaram arrais e tudo o resto destroem à sua volta.  Tudo sobre a crise lhes passa ao lado e necessariamente assim. Lembras-te das críticas da Rainha Isabel II na London School of Economics?  Dou-te um outro exemplo, exposto na semana passada por Brad Delong, sobre o pensamento neoliberal que tem condicionado e moldado às respostas à crise actual, e que passo a adaptar:

“Admitir que a terapêutica  dos monetaristas é  inadequada exigiria que os economistas de pensamento neoliberal, a maioria, remasse contra a própria maré  neoliberal do nosso tempo.  Exigiria o reconhecimento que as causas da Grande Repressão têm raízes muito mais profundas do que uma falha tecnocrática no  controlar correctamente a massa monetária.  E fazendo-o, contestando o pensamento  dominante,  seria  equivalente  a admitir os méritos da democracia social e reconhecer  que a falha dos mercados pode às vezes ser um perigo ainda maior do que a incapacidade dos governos.

O resultado tem sido  um conjunto de  políticas baseadas não na realidade  mas em ideias inadequadamente estudadas até agora.  E nós estamos ainda hoje a pagar o preço por essa enorme falha intelectual.”

Meu  caro, tu que defendes a educação como motor, esqueces que um das primeiras coisas que se fez nesta crise foi bloquear esse mesmo engenho, eliminando ao máximo a massa  crítica. Olha-me, por exemplo, para o ensino superior na UE. Bolonha e a produção de diplomas que atestam a ignorância dos licenciados. Gente de curso superior que nem uma operação de divisão  sabe fazer, e não estou a falar de cursos de Letras.  Gente que constitui a massa de fundo de onde se vai  depois recrutar a maioria daqueles que estão sempre disponíveis para defender os altos interesses da classe dominante. Os serventes do sistema. Depois há aqueles, bem mais inteligentes, que destes se sabem servir e que justificam o aparelho teórico que aos primeiros serve de cartilha- os trabalhadores especializados na empresa que tem como  função o controlo do sistema, ou seja o Estado. Dou-te um exemplo destes: o actual Secretário de Estado dos Transportes, meu antigo aluno, o Sérgio Silva Monteiro, mas não são eles que produzem o discurso ideológico do sistema. Falta-lhes cultura para isso. A produção teórica exige gente de espírito  mais fino. Segue-se-lhes em escala ascendente, os teóricos, com um discurso bem mais elaborado e nestes temos por exemplo o Vitor Gaspar, bem premiado pelos seus “altos serviços” prestados  com uma ida para o FMI. Trata-se dos capatazes da empresa, o Estado, que assegura o controlo da classe dominante.  Num tom irónico e meio provocador acrescentei:   tem cuidado, com essa alergia à violência.  Não queiras, sem querer, estar a fazer parte deste último grupo, o dos capatazes.

O meu amigo parecia fulo. Irritei-me primeiro, depois baixei o tom. E perguntei-lhe se ele se lembrava do filme Z que teria passado logo a seguir ao 25 de Abril. Tinha-o visto comigo, no cinema Império, creio. Disse-me que não se lembrava. Bem, aí era bem espelhado o papel dos intermediários, o tipo de agentes acima citados, situados social, económica e  politicamente,  entre os que estão por cima a controlar ou a querer controlar a História e aqueles que sofrem na pele os brutais efeitos desse controle. Ora os exemplos de que me tu me dás, são representantes do aparelho ideológico, disponíveis a tudo e não são representantes de  mais nada do que isso: de serem material humano sempre disponível para venda pelas migalhas vinda de cima. Dispostos a tudo e são esses os exemplos de que me falas. Dou-te um outro exemplo num filme de Visconti, Os malditos, a cena em que Aschenbach,  o oficial dos SS,  se mostrava radiante  para com a sua prima, Sofia, indicando-lhe os arquivos, os imensos arquivos fruto da colaboração das pessoas com o sistema nazi : as denúncias. É desses que me falas, mas nos períodos de alta tensão, de rebentamento do barril, desses, a História nada rezará.

Bom, em síntese, será que queres dizer que estamos nos confins da História, que estamos então de acordo com as teses de Fukuyama? Saúde-se então a vitória do capitalismo, abaixo a luta de classes. Abram-se pois as garrafas de Moet et Chandon, é isto que implicitamente nos propões?

Não é bem isso, mas nos confins da história, a questão deixa de ser posta. Estou apenas a pensar em termos de longo prazo, responde-me.

Bolas! E eu estou exactamente a pensar em termos de curto prazo e nem sequer estou interessado em mudar de horizonte temporal. É aqui que os problemas se colocam, se resolvem ou não se resolvem. É aqui que a saída ou permanência na zona euro se levanta. A História não te vai dar tempo a discutir-se a questão no longo prazo, meu caro. E a crise aperta cada vez mais as coisas. As pessoas, de uma maneira ordenada ou desordenada, hão-de saltar, exactamente como aconteceu no caso da hepatite C, pois quando não há já nada a perder, tudo pode acontecer. Possivelmente, o ministro teve medo, provavelmente a multinacional também teve medo, provavelmente um telefonema de Bruxelas a dar ordem de avançarem com o dinheiro. Só nos faltava começarem a falar de crise humanitária como na Grécia, poderão ter dito as altas autoridades de Bruxelas.

Exagero eu, questiono ao ver o olhar de espanto do meu amigo. E remato, numa espécie de remate final, ainda há dias o Der Spiegel relatava uma posição avançada pelo Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em que se mostra bem a sua deriva autocrática, uma declaração que nos deveria envergonhar a todos os nós, cidadãos europeus que somos: “Decidimos das coisas e pomo-las de lado, a esperar algum tempo e ver o que se vai passar. Se não há grandes protestos e outros motins – porque, de toda a maneira, ninguém compreende o que decidimos – então continuamos, passo a passo, até que voltar para trás se torne impossível. ” Assim vai a democracia em UERSS, meu querido amigo. Portanto, não é de excluir que tenha sido neste quadro que se deu o recuo do medicamento contra a hepatite C, possivelmente, terá sido assim que o medicamento passou imediatamente a ser distribuído, finalizei.

Mas o Syriza quer saltar do euro, vão afogá-lo, vão colocar-lhe uma cordão ao pescoço e depois de exangue, vão deixá-lo cair. E é isso que queres para Portugal, pergunta.

Não, respondi. Penso que não  é nada disso. Ficar assim na zona euro, é ficar a fazer o que se tem feito, ou seja a destruir o país, a aumentar a dívida, a ter cada vez menos capacidade de produzir, a ter cada menos possibilidade de a poder pagar. E depois, incumprimento, nem sequer já a reestruturação da dívida. Tarde demais! Um golpe de Estado, ocupação militar, os vassalos de sempre a favor do credor, a Alemanha. A permanência na zona euro é uma dor infinita e uma não solução a rebentar violentamente no final, uma morte lenta como país e como povo. Ficas sem nada e nem a longo prazo voltas a ter país, conclui.

E a saída da zona euro? Esta é a solução? Como?

A saída é dolorosa, muito dolorosa mas garantidamente menos que a permanência na zona euro. Ganhas um espaço de manobra na dinâmica interna da economia, ganhas inclusive também alguma dinâmica pelo lado externo via elasticidades preço dos bens exportáveis, ganhas alguma dinâmica pela redução via preço da despesa em  bens importados de luxo, sobretudo estes que podes fortemente taxar, ganhas alguma dinâmica de caracter puramente conjuntural pela dinamização do sector serviços, de proximidade ou não, ganhas uma almofada temporal e entras em incumprimento como no caso anterior, mas entretanto tens um projecto de salvação nacional, um projecto contra a potência ocupante, um governo com apoio popular que até à dor sofrida, sempre menos que no caso anterior, irá dar sentido. E entretanto, enquanto dura essa almofada temporal, a zona euro cairá, como um castelo de cartas. Não se pode estar a comprar tempo até ao infinito, como se tem estado a fazer, porque dessa forma tudo se degrada e cada vez mais. Impossível pois, pela própria dinâmica da dívida, insustentável essa compra sistemática do tempo, com os diabos.

E meu caro, aconselho-te a ler os trabalhos de Michael Pettis exactamente sobre o tema e começa pois por um que te vou mandar e que tem como título A Espanha em sofrimento: porque é que deixar o euro é o menor de dois males.

E deixa-me dizer-te, fico com a certeza de que a leitura dos artigos deste autor publicados ou a publicar em A Viagem dos Argonautas  facilitará a nossa discussão para a próxima vez.

Coimbra, 31 de Março de 2015

Júlio Marques Mota

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