A NOSSA RÁDIO – Em memória de Manoel de Oliveira (1908-2015) – por Álvaro José Ferreira

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«Manoel de Oliveira era mais novo do que o próprio cinema, mas não muito. Treze anos, para sermos precisos, o que é isso diante de vidas que duraram mais de um século e, em comum, mais do que qualquer outro cineasta em qualquer lugar se pode orgulhar? Mas — e Oliveira não se cansava de o dizer — durar muito não é mérito, antes capricho da Natureza bem ajudada pelos genes de um homem a vários títulos de excepção. Não por acaso ele foi atleta emérito, corredor de automóveis, piloto de aviões num tempo em que todas essas coisas eram de difícil alcance. Filho-família de uma burguesia nortenha endinheirada, o cinema apareceu-lhe como um hobby caro, uma inclinação moderna nesses finais dos anos 20 em que a trepidação do novo atravessava uma geração com vontade de futuro. A mesma a que pertenciam António Lopes Ribeiro, Jorge Brum do Canto, Cotinelli Telmo ou Leitão de Barros que, na transição do cinema mudo para o cinema sonoro e no momento em que o Estado Novo se cimentava, tomaram o cinema português nas mãos. Oliveira estreou-se ainda no tempo do mudo, com “Douro, Faina Fluvial”, um documentário financiado pela família e estreado pela mão de Lopes Ribeiro num dos primeiros eventos culturais internacionais que António Ferro organizava na consolidação do novo regime político — o V Congresso Internacional da Crítica Dramática e Musical.

O mesmo Lopes Ribeiro, nesse início dos anos 40 em que sonhou um modelo de produção contínua, lhe produz a primeira longa-metragem, “Aniki-Bóbó”, de que António Ferro muito gostava. Mas era longe o Porto onde Oliveira sempre viveu, ele tinha outros interesses e modos de vida, os corredores do poder ou os escritórios da Tóbis não lhe estavam no caminho, “Aniki-Bóbó” não fizera grandes resultados na bilheteira (três semanas, no Éden), os projectos que foi acalentando foram-se gorando.  Mas Manoel de Oliveira nunca desistiu, perseverou na ideia de fazer cinema, mesmo se as poucas coisas que vai conseguindo levar a cabo não definem, ainda, um estilo. O que o definia era uma espécie de hombridade, uma vontade de não ceder às leis da moda, a capacidade (bem ajudada por uma independência económica muito útil em causas nobres) de não se moldar.

Sempre fez o seu cinema, mesmo quando não se podia precisar o que isso era. Isso aproximou-o da geração do Cinema Novo que, no princípio dos anos 60, o tomou como referência tutelar, modelo de verticalidade que não estético, pois de Oliveira não se podia então dizer que tivesse um definido modo cinematográfico. É essa geração que lhe oferece a possibilidade de retorno à ficção, no momento em que a Fundação Gulbenkian abre os cordões à bolsa e financia um Centro Português de Cinema onde Oliveira se integra. “O Passado e o Presente” (1972) deixa meio mundo estupefacto — pela ironia, pela escolha do texto, pela teatralidade rugosa dos actores. Ninguém poderia prever  que estava ali o cadinho formal de uma obra de que aquele filme, estreado quando Oliveira estava nos seus 63 anos, não era nem o epílogo nem a homenagem, mas tão-só a letra capitular, a abertura.  A fita que o texto teatral de Vicente Sanches propiciara ao cineasta, o afastamento cerce de qualquer realismo, o cinema enquanto artifício, realidade-outra, prossegue na famosa tetralogia dos amores frustrados que tanta polémica gerou e que culmina com “Francisca” (1981). Nesse filme, Oliveira encontra dois factores decisivos para tudo o que aconteceu depois. Um foi o triunfo crítico internacional obtido desde logo na estreia mundial no Festival de Cannes.

Doravante, todos os seus filmes terão estreia nos maiores festivais, Oliveira torna-se uma vedeta nos círculos culturais e uma presença regular em Veneza, Cannes, Roterdão ou Locarno. O outro factor essencial que “Francisca” inaugura é o produtor Paulo Branco. A aliança entre os dois, numa interessantíssima fusão de interesses complementares vai durar até 2005. Branco consegue financiamentos constantes para permitir ao realizador uma actividade praticamente contínua que, a partir de 1990, ganha a espantosa rotina de (pelo menos) uma longa-metragem por ano. Oliveira corresponde adequando a sua criatividade às contingências do dinheiro disponível e, até, da sua proveniência. É assim que vai alternando produções ambiciosas, a exigir grandes meios (como “‘Non’, ou a Vã Glória de Mandar”), com outras de mais maneira dimensão (caso de “Mon Cas”), que não filmicamente menos ambiciosas. E, sendo o cineasta que mais radicalmente assume o estatuto de autor (fazendo filmes singulares e incomparáveis), acedeu ao mais custoso dos compromissos: cortar quase vinte minutos a “Vale Abraão” (1993) para que pudesse ser estreado no Festival de Cannes… Nesse gesto ele provava, também, ser um homem sintonizado com os mercados cinematográficos e as suas especificidades. Não é acaso que Oliveira se tenha tornado o mais comerciável cineasta da história do cinema português — os seus filmes vendiam-se para todo o lado.

Coroado por múltiplas honrarias, cinematográficas e de Estado, em Portugal como em França, em Itália, no mundo, Oliveira angariou o estatuto de Mestre e soube conservá-lo. Teve grandes vedetas internacionais a querer trabalhar com ele em filmes que tão depressa mergulhavam na História e nos seus labirintos, como na grande literatura, ou em histórias originais, continuamente cuidando do rendilhado dos textos, numa surpreendente e sempre renovada arte em que o fingimento, os espaços, os véus com que a realidade se disfarça, acrescentavam iluminações, fascínio — e nos iam intrigando. Nem sempre obras-primas, é evidente, porque nenhum cineasta o consegue. Há filmes maiores e outros decerto dispensáveis, triagem que o tempo fará com a impiedade que sabemos. Não nos cabe, agora, influenciar a sua mão. Por mim, fora o óbvio pináculo da catedral que “Vale Abraão” é, prefiro os filmes mais pequenos, íntimos: “Benilde ou a Virgem-Mãe” [1975], “Mon Cas” [1986], “O Dia do Desespero” [1992], “O Quinto Império – Ontem como Hoje” [2004]. Ou esse extraordinário exercício de confessionalidade, ironia e dissimulação — “Porto da Minha Infância” [2001]. Mais importante do que tudo, Oliveira foi, nos últimos quarenta anos, um gigante que abria caminho à nossa cinematografia nos espaços internacionais, tarefa que ninguém está em condições de prosseguir. É que, ano após ano, filme após filme, ele ia produzindo os seus frutos temporões com a fasquia sempre dois palmos acima do comum dos mortais. Agora foi-se embora e deixou-nos, a todos, mais sós.» (Jorge Leitão Ramos, in “Expresso”, 03-Abr-2015)

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