CARTA DE ÉVORA – «Matar o Mandarim!» – por Joaquim Palminha Silva

evoraQue sabemos nós de concreto acerca do atrevimento dos profissionais da política, a quem “sai” a sorte do Poder na lotaria eleitoral, que depois usam durante um período mais do que suficiente para «matar o mandarim».Do que não restam dúvidas, é que a grande maioria revela bastante conhecimento e habilidade a percorrer o caminho necessário para «matar o mandarim».

Como muito esquece a quem não sabe, aqui se regista a história das origens da expressão «matar o mandarim», e das atribulações sofridas por este conceito talvez pitoresco, mas diabolicamente …criminoso!

Objecto de muitas utilizações literárias e filosóficas, a expressão é de origem francesa. Porém, nunca cheguei a perceber até hoje (2015) por que razão os seus ocasionais utilizadores, às vezes escritores vivendo em pleno sucesso, escodem dos seus leitores as origens da expressão. Já vamos ver porquê, mas a verdade é que estas celebridades não resistiram à maléfica tentação e, de certa forma, acabaram também por «matar o mandarim»!

A primeira notícia que conseguimos encontrar sobre a expressão e a ideia que ela encerra, remete-nos para a autoria de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e filósofo suíço de língua francesa.

Conhecida sob a designação de «paradoxo de Rousseau», parece que alguns professores de filosofia dos estabelecimentos de ensino franceses a utilizaram com frequência nos anos 20 do século XX. Esta informação e testemunho pertencem ao engenheiro químico, dirigente da resistência francesa contra o ocupante nazi, escritor e jornalista Jacques Bergier (1910-1978), que nos garante quanto a expressão era “usada” nas aulas que, na juventude, frequentou no Liceu Saint-Louis (Paris), (1). Todavia, há quem atribua a autoria da expressão ao filósofo francês, e grande organizador da «Enciclopédia», Denis Diderot (1713-1784).

Eis, pois, o «paradoxo de Rosseau»:- Existe na longínqua China um riquíssimo mandarim que pode ser morto de maneira fácil, bastando para isso premir um pequeno botão de campainha em Paris. Tu nunca o viste, pelo que ele não te pode afectar sentimentalmente. Entretanto, o mandarim lavrou testamento a favor da pessoa capaz de o matar, pressionando o botão da campainha. Irás tu carregar no botão? Com a finalidade de enriqueceres sem esforço, serás capaz de matar o mandarim, ainda que indirectamente, premindo o botão da campainha?

No mundo da língua portuguesa, o maior mérito da frase consiste no facto de ter inspirado a Eça de Queirós a pequena obra-prima que é a novela «O Mandarim», (1880). Há quem pense que tal ocorreu ao escritor português ao ler uma passagem da obra «O Génio do Cristianismo», (1802), do visconde de Chateaubriand (1768-1848) que, no capítulo «Do Remorso e da Consciência», propõe um problema de consciência nos seguintes termos: «Se pudesses por um simples desejo matar um homem na China e herdar toda a sua fortuna na Europa […] consentirias em formular esse desejo?». A China entrou na exposição desta ideia, segundo se pensa, apenas porque era então uma terra remota, antípoda da França.

O colossal escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850), num dos seus primeiros romances («Anete e o Criminoso»,1824), repetiu esta questão, mas introduziu na pergunta a palavra «mandarim». Acontece que esse romance do pioneiro do realismo literário é ainda hoje considerado obra menor de um principiante, pelo que a frase e o «mandarim» passaram despercebidos… Porém, cerca de dez anos mais tarde, na edição da obra-prima «Pai Goriot», Balzac apresenta a mesma questão de consciência através das palavras do personagem «Rastignac», dirigidas a outros personagens da obra.

O facto é que a questão se tornou proverbial e, assim, nasceu a expressão «tuer le mandarin». Acrescente-se que, naquele tempo, já Balzac atribuía a autoria da expressão a Jean-Jacques Rosseau.

De 12 de Março a 15 de Outubro de 1865, o jornal «Correio do Brasil», folha católica conservadora, publicou como folhetins, sem referir o autor, a pouco escrupulosa tradução do romance francês «O herdeiro do Mandarim», onde abordava sabida questão. Há historiador de Literatura portuguesa e brasileira, bem como biógrafos apressados de Eça de Queirós acreditando que foi essa a fonte inspiradora do escritor que no seu «O Mandarim», identifica o personagem central como «Teodoro» que, manipulado pelo Diabo, acaba por matar um mandarim na China, naturalmente tocando num botão de campainha existente em Lisboa!

Entretanto, recorde-se que o título «mandarim» não existe em chinês, tendo sido inventado pelos primeiros portugueses que se instalaram em Macau, de forma a designarem os importantes funcionários da China com quem eram obrigados a negociar. Curiosamente, o próprio Eça de Queirós dá a este respeito alguns esclarecimentos na sua novela, ao dizer-nos que «ninguém o entende na China» e, ironizando, garante-nos que na gíria portuguesa de então «vem do lindo verbo mandar». Na verdade, funcionário em chinês é kwan. Todavia, a palavra «mandarim» internacionalizou-se, como tantas outras do século português de quinhentos. Por exemplo, na Inglaterra dos anos 50 (séc. XX) a palavra ainda era usada na gíria dos funcionários diplomáticos: «the mandarins of the Foreign Office».

Regressemos ao mundo de língua portuguesa… O escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1909) utilizou várias vezes a expressão «mandarim», mas deve-se ter enganado, pois menciona o «botão de Diderot que matava um homem na China», como é o caso da sua crónica publicada no periódico «A Semana» de 22/1/1893.

Foi, porém, no início da segunda metade do século XIX, que o tema surgiu como questão “filosófica”, emancipando-se assim, se nos é permitido dizer, um pouco do seu pitoresco literário, acontecendo isso sobre as tábuas do palco do teatro Alcazar (Paris) no ano de 1864, através de dois autores de teatro (Albert Monnier e Edouard Martin) que escreveram a peça «As-tu tué le Mandarin?». Curiosamente, registemos que foi por esta altura que Machado de Assis foi cronista e folhetinista no jornal «Diário do Rio de Janeiro». Pensa-se que, apesar do engano na menção do seu autor, foi nesta peça de teatro que Machado de Assis colheu a ideia da origem da palavra e seu tema anexo. De resto, foi sobre esta mesma questão de ética que o brasileiro escreveu o seu famoso conto «O Enfermeiro».

Se em França a palavra «mandarim» serviu de título ao romance de Simone de Beauvoir «Les Mandarins» (1954), foi também em França, segundo Jacques Bergier que a sua problemática filosófica fez mais “estragos”, logo a partir dos anos 20 do século passado. Posto em discussão reflexiva nas aulas liceais de Filosofia, o denominado «paradoxo de Rousseau» encontrava pela frente dois tipos de alunos: o jovem cínico que se acreditava inteligente; e o jovem de pensamento corriqueiro, dominante no ambiente social de fundo judaico-cristão. Enquanto o primeiro admitia que pressionaria imediatamente o botão da campainha, tendo em vista a herança do mandarim; o segundo, pelo contrário, afirmava «-Nunca! Isso seria um crime!». Aconteceu então, fazendo fé na narrativa de Jacques Bergier, a inesperada vantagem do adiamento coberto com o “papel de embrulho” da chantagem, tendo em vista um lucro imediato, embora talvez mais modesto, mas seguro e aparentemente  “não-criminoso”. Enfim, o famoso engenheiro químico diz-nos que apresentou ao professor de Filosofia a seguinte e inédita proposta sobre o «paradoxo de Rousseau»: – 1º, correria à estação de Correios mais próxima; 2º, daí enviaria um telegrama para o mandarim com o seguinte conteúdo: «Envie já dez milhões de dólares ou carrego no botão»!

Está visto… Esta personalidade francesa não conheceu Portugal, nem os políticos profissionais portugueses, que depois de desenrolarem o tapete do Estado sob os seus pés, evitando tocar na campainha que está em Lisboa, com a atitude desembaraçada de quem supostamente está a servir a “causa pública”, sempre nos vão dizendo que, para falharem propositadamente a morte do «mandarim», lhe temos de enviar uns quantos milhões de euros, fruto do nosso trabalho… Isto é, a campainha que pressionam é outra, mas não deixa de encurtar vidas. – Quem salva, pois, o «mandarim» que existe em cada um de nós?

 

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(1) – Jacques Bergier, Je ne suis pas une legende, edições Retz, Paris, 1978, (tradução em português de 1978).

 

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