Crónica em Tempo de Guerra – por António Avelãs Nunes III

Falareconomia1

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

(continuação)

 

4. – Em 12 de Julho de 2015 foi tornada pública a plataforma de entendimento que os credores impuseram à Grécia e da qual constam as exigências apontadas como a condição sine qua non para um eventual futuro terceiro resgate com base em empréstimos concedidos pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). É um ultimato mais humilhante para o povo grego do que o Tratado de Versalhes para a Alemanha vencida na 1ª Guerra Mundial.

Tal como por ocasião do Pacto de Munique, em 1938, toda a ‘Europa democrática’, governada por conservadores ou por socialistas (no caso da Alemanha governada por uma grande coligação entre os dois partidos destas ‘famílias’ políticas), aceitou agora também a vergonha deste diktat humilhante imposto à Grécia pelos credores. Esta operação ainda não recorreu à «abolição da democracia segundo o modelo chileno dos anos 1970» (cito de novo Wolfgang Streeck), talvez porque, como refere este autor alemão, esta é uma opção que não está ainda actualmente disponível. A subjugação do ‘inimigo’ derrotado, espezinhando, como no Chile de Allende, a vontade democraticamente expressa pelo povo soberano, não recorreu, desta vez, aos tanques de um qualquer Pinochet. E não utilizou sequer os meios técnicos mais sofisticados que dispensam os tanques, os aviões, os drones, os bombardeamentos cirúrgicos (que só produzem danos colaterais). Mas é um golpe do mesmo tipo: um golpe contra a democracia e contra a soberania de um povo, impiedosamente sacrificado aos interesses do império dos credores e do capital financeiro que governa o mundo. A guerra está a regressar à Europa, mas os soldados invasores usam fardas e armamento muito diferentes dos utilizados anteriormente. Mas os ‘senhores da guerra’ são praticamente os mesmos.

Dramaticamente, tal como aqueles que assinaram com a Alemanha nazi o Pacto da vergonha (Munique, 1938), também agora os dirigentes socialistas no poder (França e Itália) e os partidos socialistas na oposição (alguns dos quais estão entre os que chamavam Tsipras de radical irresponsável e agora o apelidam de realista corajoso) proclamam aos quatro ventos, orgulhosos do seu feito, que, graças a eles, foi conseguido este ‘acordo’ (recusam ver nele um ultimato humilhante), que salvou a Grécia, o euro e a Europa. Não aprenderam nada com a História.

O FMI veio agora dizer (um dia destes dirá exactamente o contrário…) que, no caso da Grécia, a dívida é altamente insustentável, adiantando que, com as medidas propostas pelos credores, «a dívida pública grega permanecerá em níveis muito elevados ao longo de décadas e altamente vulnerável a choques», admitindo que atinja um pico de 200% do PIB em 2018, prevendo que só lá para 2040 a dívida venha a situar-se à roda de 70% do PIB, e defendendo, por isso mesmo, a necessidade de uma reestruturação da dívida bastante ampla (perdão de 30% da dívida, concessão de um prazo de carência de trinta anos e prorrogação do prazo de vencimento da dívida por outros vinte anos).[1]

Mas a verdade é que a Alemanha (e outros ‘alemães’ da Europa do capital) tentou impedir a publicação do relatório em que o FMI defende este ponto de vista. Acabou por vir a público por pressão dos EUA (quem pode, manda…). E o ‘acordo’ imposto à Grécia ignora, olimpicamente (talvez em homenagem à Grécia…) tal questão. Limita-se a declarar que «existem graves preocupações quanto à sustentabilidade da dívida grega», mas logo acrescenta que tal situação se deve ao «afrouxamento das políticas durante os últimos doze meses».[2] E continua: «o Eurogrupo mantém-se disposto a ponderar, se necessário, possíveis medidas adicionais (eventual alargamento dos períodos de carência e dos prazos de pagamento)», mas adverte que «estas medidas ficarão dependentes da aplicação integral» do tratamento de choque austeritário imposto pelos credores. E remata: «a Cimeira do Euro salienta que não podem ser efectuados cortes nominais da dívida». E acabou a conversa.[3]

A verdade, porém, é que o medo do Grexit por parte dos credores e, muito provavelmente, a pressão da Administração americana, levaram o FMI a declarar, em 14.7.2015, que «a dívida da Grécia só pode tornar-se sustentável através de medidas de alívio que vão muito além daquilo a que a Europa está, até agora, disposta a conceder».

Por outro lado, Mario Draghi vem revelando a discordância aberta do BCE com Schäuble (que continua a defender em público a saída da Grécia da zona euro, pelo menos temporariamente), sustentando que a Grécia precisa urgentemente de um «alívio da dívida» no âmbito do que permitem os Tratados da UE, recordando (aos Schäuble) que o BCE tem «um mandato para cumprir» e que não deixará de o cumprir, concluindo que «a Grécia é e continuará a ser um membro da zona euro».

Até a Comissão Europeia se vem pronunciando no sentido de que a dívida grega só poderá tornar-se sustentável se beneficiar de «uma alteração de perfil muito substancial», com maturidades mais longas para os empréstimos actuais e futuros, moratória no pagamento de juros e taxas de juro mais baixas (taxas AAA). Alguma coisa mexe…

A referida plataforma de entendimento começa por enfatizar o seguinte: «A Cimeira do Euro sublinha a necessidade crucial de restabelecer a confiança com as autoridades gregas». Mas é claro que não é de confiança que se trata, porque, neste capítulo, as autoridades que representam os credores é que não oferecem confiança nenhuma.

Em tradução minha, o que a afirmação que transcrevi significa é isto: os credores vitoriosos sublinham que a Grécia vencida tem de se render incondicionalmente aos nossos comandos e o governo grego tem de ‘colaborar’ com as ‘tropas ocupantes’, ainda que para tal tenha de desrespeitar e castigar o seu povo. Só assim as autoridades gregas terão a nossa confiança. O governo da Grécia fica condenado a revogar, por via legislativa, decisões do Supremo Tribunal da Grécia favoráveis aos pensionistas e fica também condenado a revogar, a curtíssimo prazo, a legislação que promulgou durante os cinco meses de governo de Siryza com a qual a troika não concorda. Em vários pontos do diktat, obriga-se o governo grego a reconhecer resultarem das suas políticas algumas das dificuldades por que passa actualmente a Grécia. Obriga-se a vítima das políticas de austeridade que lhe foram impostas a atribuir a si própria a culpa dos seus sofrimentos, ilibando os carrascos dos ‘crimes’ que cometeram contra o bem-estar e a dignidade do povo grego. Chega-se ao nível do puro sadismo.

O ‘diktat’ de 12.7.2015 obriga também o Parlamento grego a aprovar, dentro de dois ou três dias, legislação vária e complexa, que, inclusivamente, obriga o governo grego a «introduzir cortes quase automáticos nas despesas no caso de desvio em relação aos objectivos ambiciosos relativos ao saldo primário, depois de consultado o Conselho Orçamental e sob reserva de aprovação prévia pelas Instituições» (FMI, UE e BCE). É uma humilhação para o Parlamento grego, obrigado a votar de cruz (incluindo a perda de competências próprias dos parlamentos, e obrigado a aceitar que, em certas condições, haja cortes automáticos das despesas, i. é, sem qualquer intervenção do Parlamento). É mais uma demonstração da crise da democracia representativa. Tal democracia só serve para enfeitar discursos, mas ninguém a leva a sério. Talvez estejam a brincar com o fogo.

Para além de medidas mais gravosas do que as aplicadas nos últimos cinco anos (obriga a concretizar a cláusula de défice zero até Outubro/2015), aquela plataforma impõe ainda: «um programa de privatizações significativamente reforçado» (o saque depois da vitória!); a «modernização rigorosa da contratação colectiva» (realce-se o cinismo da palavra modernização quando se impõe um regresso ao passado, contrariando as Convenções da OIT); a facilitação dos despedimentos colectivos «segundo as melhores práticas da UE nesta matéria»; a revisão da legislação laboral «alinhada pelas boas práticas internacionais e europeias», evitando «o regresso a políticas do passado, incompatíveis com os objectivos da promoção do crescimento sustentável e inclusivo»; a adopção de «um vasto programa de reforma do sistema de pensões»; a «racionalização do sistema do IVA» (i. é, o aumento brutal da carga fiscal que vai incidir sobre os mais pobres e que vai afectar negativamente o turismo, que é o sector mais importante da economia grega e o único que tem vindo a crescer); a adopção de medidas para «reduzir ainda mais os custos da Administração Pública» (traduzindo: baixar ainda mais os salários e despedir mais trabalhadores); a publicação a curtíssimo prazo de um Código de Processos Civil, certamente para tornar mais expeditos e mais céleres os processos de penhora, execução de hipotecas e despejo de pessoas que não conseguem pagar as prestações do empréstimo para comprar a casa em qua habitam ou as prestações e outros encargos das oficinas, lojas, escritórios ou restaurantes em que ganham a sua vida; a obrigação do governo grego de apresentar um pedido de assistência financeira ao MEE, obrigatoriamente acompanhado de pedido idêntico junto do FMI (estranha exigência, que é uma confissão da ‘menoridade’ das instituições da UE; será porque, dado o seu passado, o FMI dá mais garantias como ‘polícia de última instância’?).

Em cada linha, uma afronta ao governo da Grécia e ao povo grego!

Como se vê pela terminologia utilizada, este texto é um monumento ao cinismo e à hipocrisia políticas, utilizando uma linguagem que humilha o povo grego, ao mesmo tempo que procura esconder a verdadeira dimensão do castigo que lhe está a infligir.

Para suprema humilhação, o ‘acordo’ obriga a Grécia a constituir um «fundo independente» constituído por «activos gregos de valor», esperando os credores que a sua venda venha a render 50 mil milhões de euros, que serão assim distribuídos: 25 mil milhões vão directamente para os credores-vencedores; 12,5 mil milhões de euros ficam cativos como contrapartida (garantia) de um eventual abatimento dos créditos do devedor-vencido; 12,5 mil milhões ficarão disponíveis para investimento sob a vigilância dos credores.

Pergunto: se as empresas públicas já foram privatizadas ou devem ser privatizadas imediatamente, que activos são estes? Fala-se do velho aeroporto de Hellinikon (abandonado desde 2001), dos correios, da empresa petrolífera e da companhia de electricidade. Mas estamos longíssimo dos 50 mil milhões de euros. O que resta então? As ilhas do Mar Egeu, as praias, o Parthénon, obras de arte, o recheio dos museus?

Hipocritamente, o diktat dos credores faz uma declaração tipo polícia bom: «A Comissão irá trabalhar em estrita colaboração com as autoridades gregas para mobilizar até 35 mil milhões de euros para financiar a economia».

Mas é claro que não se dispensa o acompanhamento dos representantes dos credores. Mais. Esta mesma Comissão Europeia tem bloqueado o pagamento à Grécia de 35 mil milhões de fundos estruturais a que a Grécia tem direito como membro da UE. Por outro lado, esta promessa de agora está a contar, diria o nosso povo, com o ovo no cú da pita, i. é, com o famigerado Plano Juncker, que nunca mais arranca e que, na minha opinião, não passa de uma quimera, assente na miragem de uma chuva de investimentos privados… Quem precisa de justificar a confiança nelas são as autoridades europeias (as mesmas que patrocinaram negócios escuros, inspirados pelo Goldman Sachs e outros, que levaram a Grécia à ruína, em proveito das empresas alemãs e dos grandes bancos alemães e franceses).

Com estas ‘armas’ os credores derrotaram o povo grego, vão continuar a tarefa de destruir a sua economia, vão aumentar o desemprego, a pobreza e a exclusão social, com a certeza de que a dívida só poderá aumentar e de que a capacidade da Grécia para a pagar vai continuar a ser cada vez mais reduzida. «Não há exemplos de países que tenham recuperado de uma crise através da austeridade» (Joseph Stiglitz).

O que os credores estão a impor ao povo grego são décadas de trabalho escravo ao serviço dos senhores-credores. É o regresso da escravidão por dívidas. Este diktat é o retrato da Europa do euro, da Europa alemã que confiscou a soberania dos estados-membros com a promessa de a trocar por uma solidariedade que agora lhes nega. Os povos da ‘Europa’ ficaram sem uma coisa e sem a outra. E, sem soberania, perderam também o único espaço em que podem exercer a cidadania e praticar a democracia.

No plano pessoal, posso oferecer toda a compreensão a quem tem de tomar decisões em circunstâncias tão dramáticas. Mas, no plano político, não posso deixar de dizer que esses decisores têm de assumir a responsabilidade política por se terem deixado cair na emboscada que lhes foi preparada pelo poderoso e sagaz ‘inimigo’ cuja força não poderiam desconhecer. Tenho de dizer que estou ao lado do Presidente do Parlamento grego, na justificação do seu voto contra o diktat dos credores: «Não temos o direito de interpretar o NÃO dos eleitores como um SIM». E não posso apoiar o gesto político daqueles deputados que declararam «votar contra as nossas [deles] consciências e apoiar o acordo», sabendo que 67% dos seus concidadãos rejeitaram clara e corajosamente as políticas de austeridade impostas por tal ‘acordo’.

Deixando de lado os deputados em si mesmos, o que vale a pena sublinhar é que a dita democracia representativa está a tornar-se uma farsa. Não podendo ignorar a vontade do povo grego expressa em referendo dias antes, os que se dizem seus representantes (os que votaram a favor da aceitação do diktat) não honraram o mandato democrático que receberam através do sufrágio universal e desrespeitaram o povo soberano que os elegeu. Podem dar as voltas que quiserem, podem adulterar o significado das palavras, mas isto não é democracia, é a negação dela.

            Uma nota mais: na passagem de 15 para 16 de Julho de 2015, o Parlamento grego votou a submissão ao diktat dos credores, com 64 votos contra e seis abstenções. Durante o debate, o Primeiro-Ministro Alexis Tsipras voltou a dizer que não acreditava nas medidas constantes na proposta final dos credores e que não concordava com elas, mas votou a favor da sua aceitação, alegando que não tinha outra alternativa. Alguém acredita que este Primeiro-Ministro tem condições pessoais e políticas para executar um programa em que não acredita e com o qual não concorda? Obrigá-lo a aceitar tal programa e a comprometer-se a executá-lo foi um gesto deliberado de humilhação, tanto mais que, para além da confissão pública do FMI, não é admissível que algum dirigente europeu acredite em tal programa e entenda que a Grécia poderá algum dia pagar a sua dívida. Como disse um dirigente finlandês, «o que era importante para nós, desde o início, era conseguir condicionantes duras. Sentimos que isso foi conseguido no acordo». É claro que este foi o objectivo de todos os credores que impuseram o diktat a Tsipras no dia 12.7.2015.

            E duas perguntas finais. Será válido um ‘acordo’ assinado sob coacção por quem não acredita nas (e não concorda com as) medidas nele inscritas? As dívidas resultantes deste diktat poderão ser exigidas ao povo grego, que tão expressivamente rejeitou as propostas dos credores? Não se tratará de dívidas ilegítimas ou mesmo de dívidas odiosas, que, segundo o Direito Internacional, os povos não têm que pagar?

(continua)

 

            [1] Quando, antes de anunciado o referendo, se pensou que poderia chegar-se a um acordo, os jornais deram conta de um documento de trabalho distribuído aos deputados alemães (na previsão de que viessem a ser chamados a votar esse acordo), no qual se dizia que mesmo depois de aplicadas as medidas que estavam previstas, a dívida grega se situaria ainda, em 2030, à volta de 120% do PIB.

A própria Comissão Europeia prevê que a dívida grega possa representar 187% do PIB em 2020, 176% em 2022 e 143% em 2030. Esta dívida não é nem nunca será pagável, tanto mais que, com a ‘ajuda’ do programa de austeridade aceite pelo Primeiro-Ministro grego, há já previsões que apontam para uma quebra do PIB que pode chegar a -10% em 2015/2016. A pergunta que se impõe é esta: como poderá sobreviver um regime democrático a mais esta hecatombe, num país em que o PIB já teve uma quebra de 25% do PIB nos últimos cinco anos e tem uma taxa de desemprego de 27%, sem conseguir uma saída para os seus jovens?

            [2] O que é, consabidamente, uma mentira. Além do mais, é público que o PIB tinha baixado 0,4% no último trimestre de 2014 (ainda no tempo do governo amigo dos credores), e é público também que o governo do Siryza conseguiu aumentar o défice primário e conseguiu também alguns resultados positivos em matéria de balança de pagamentos.

            [3] Mas todos sabemos que não há regra sem excepção. Veja-se o que se escreve no editorial do Financial Times de 11.6.2015: «Os credores da Ucrânia têm de partilhar a dor do país» e «têm de aceitar um perdão de dívida», pelo que há já um «pacote de apoios internacional [aposto que a Alemanha de Schäuble é um dos apoiantes!] (…) que admite a reestruturação da dívida e cortará em 15,3 mil milhões de euros os juros a pagar nos próximos quatro anos», para que a dívida seja gerível tendo em conta a produção do país. O mesmo editorial acrescenta que alguns credores privados «resistem a um perdão de dívida», mas logo dá a sentença: «terão de ceder! Têm a obrigação moral de concordar com uma reestruturação que permita reduzir a dívida para níveis sustentáveis». E defende o Financial Times «a utilização de mecanismos de indexação ao PIB», porque esta é a solução «melhor para todas as partes». E tira a seguinte moralidade: «em matéria de tal importância geopolítica, não se pode permitir que os interesses financeiros privados ditem as políticas públicas».

Apoiado! Isto é que é fazer política em vez de aplicar regras! Os inexistentes do Eurogrupo deviam ler este editorial e meditar no que nele se diz. E os chefes de estado e de governo deveriam fazer o mesmo esforço de leitura e meditação. Recomendo o mesmo exercício aos responsáveis do FMI. Recusaram ao Nepal qualquer perdão de dívida, apesar de este país ter sofrido há tão pouco tempo os efeitos de uma catástrofe natural particularmente devastadora. Têm dito que não poderão apoiar a Grécia (as regras estatutárias não o permitem…) se este país não oferecer garantias de sustentabilidade da dívida e se o governo grego não der provas de empenhamento na execução do programa de austeridade contido no diktat de 12. 7. 2015. Mas garantiram à Ucrânia que «os fundos do FMI continuarão disponíveis mesmo que o país falhe nos pagamentos aos seus credores privados».

Informações colhidas em J. Cadima, «Prisão de povos», Avante! de 16.7.2015.

 

Crónica em Tempo de Guerra – por António Avelãs Nunes II

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