OLHARES SOBRE A HISTÓRIA – A REVOLUÇÃO DA MARIA DA FONTE E AS SUAS REPERCUSSÕES NA REGIÃO DE LAMEGO – por JORGE LÁZARO – I

Saltimbancos

 

Maria_da_Fonte - I
Obrigado à Wikipedia

 

 A Revolução da Maria da Fonte e as suas repercussões na região de Lamego

Jorge Lázaro

Notas preliminares

  1. Este trabalho foi inicialmente concebido de molde a abranger todo o período histórico que vai desde a Primavera de 1846 a Junho de 1847 (Convenção de Gramido).

  1. Se tal não veio a concretizar-se, não foi porque tivéssemos achado correcto autonomizar e privilegiar a primeira fase desse período, mas porque os dados que recolhemos na investigação que realizámos centrada na região de Lamego foram de tal modo dispersos e escassos para os meses posteriores a Outubro de 46 que não nos permitiram encontrar um fio condutor na sucessão dos acontecimentos.

  1. Apesar do apoio que obtivemos por parte dos responsáveis da Câmara Municipal, o nosso trabalho de pesquisa foi dificultado pelo facto de grande parte da documentação se encontrar ainda a monte. Consideramos, por isso, um feliz acaso o termos encontrado a pasta onde se encontrava a correspondência oficial referente aos anos de 45 a 47.

Não admira pois que, à medida que avançar o levantamento e organização do material existente, outros documentos de valor para o assunto de que nos ocupamos venham a ser encontrados. Estamos, por exemplo, a pensar no livro de Registos de Actas que Gonçalves da Costa cita no seu livro sobre as «Lutas Liberais e Miguelistas em Lamego», em nota, na pág. 170, e que não conseguimos encontrar, apesar do apoio que nesse sentido nos foi prestado, e que agradecemos, pelo autor da obra citada.

1. A eclosão dos levantamentos populares da Primavera de 1846

1. 1 . – Seu enquadramento socioeconómico e político a nível regional

Na Primavera de 1846 rebentam no Minho motins populares, vulgarmente conhecidos pelo nome de Revolução da Maria da Fonte, que irão assumir tal relevo na história oitocentista portuguesa que Albert Silbert os considera «o acontecimento porventura mais original do século XIX português» [1] e Palminha Silva, referindo-se ao período em que se situaram se atreve a denominá-lo de «época gloriosa, no sentido em que é glorioso um povo que conhece a sua força e a faz valer» [2]. Da consciência que este povo tinha da importância dos acontecimentos fez-se eco o redactor do editorial do 1º número do jornal setembrista de Coimbra O Grito Nacional, ao escrever: «Não há na história portuguesa uma página que se possa comparar com esta que hoje se desenrola em todo o País».

 Estávamos a 19 de Maio de 1846. Segundo Joaquim de Carvalho, «ao contrário de todos os movimentos anteriores, e até da revolução espanhola, dirigidos por uma minoria e deflagrados por um pronunciamento militar, a Maria da Fonte brotou do arranco espontâneo e genuinamente popular, sem unidade de comando nem programa político» [3]. É esta também a opinião de uma testemunha ocular, Pinto Roby, que escreve em 1846, ainda sob o calor dos acontecimentos: « (…) sublevação instintiva das massas que em um mês (desde 15 de Abril próximo passado) percorreu toda esta província (o Minho), verdadeiro corpo sem cabeça, mas toda alma e vida, esta decisão popular e toda espírito público» [4]. O autor do editorial já referido do periódico O Grito Nacional considera que nem a revolução de 1640, no seu entender a mais nacional das nossas revoluções passadas, «teve o carácter espontâneo, genérico, livre que distingue o brado popular que se escuta agora (19 de Maio) em todos os ângulos da Nação».

De facto os gritos: «Morram os Cabrais! Abaixo as leis novas!» depressa ecoaram pelo país fora chamando e unindo na luta as massas populares, em geral, e os camponeses, em particular. «A insurreição dispersava-se raivosamente em motins populares difíceis de dominar e impossíveis de prevenir» escreve o mesmo Joaquim de Carvalho [5]. «Foi o Minho, refere ainda o articulista de O Grito Nacional (…) quem alçou a voz da liberdade; mas esta voz já tão querida aos Portugueses tem encontrado formosos ecos; a Beira reclama para si uma parte dos loiros populares; Coimbra quer uma coroa cívica para os nobres filhos da sua Academia (…)».

Cumpria-se a previsão feita em Abril por um outro jornal setembrista: A Revolução de Setembro: «O que acontece no Minho mais tarde ou mais cedo acontecerá em todo o país; porque o efeito há de seguir a causa, como o trovão segue o relâmpago (…)». Qual então a causa desta vasta movimentação popular? O artigo que acabamos de citar abre-nos a porta para respondermos a esta questão fundamental: «As dissipações, as prevaricações, as antecipações, os empréstimos conduziram o governo à necessidade de enormes tributos; os enormes tributos têm o inconveniente da impossibilidade do pagamento; a impossibilidade do pagamento traz a necessidade das violências, e as violências conduzem à revolta em último resultado».

No deflagrar da revolução está, pois, a questão dos impostos, articulada com a política financeira do Estado que estimulava a especulação e facilitava a concentração do capital. «Pelo canal das contribuições», explica Victor de Sá, «o produto do trabalho nacional vinha em última análise alimentar a alta finança, acumulando-se deste modo, entre as mãos de um pequeno número de capitalistas (…) que beneficiavam de importantes privilégios, graças à constituição de múltiplas companhias a que o governo concedia monopólios económicos à custa de empréstimos e adiantamentos.» [6].

De facto, entre as odiadas «leis novas» encontra-se a de 19 de Abril de 1845 que estabelecia o sistema de Contribuições Directas de Repartição que foi regulamentada em Dezembro desse ano. Os impostos, contudo, não serviam apenas para alimentar a actividade especulativa favorecida pelo Estado: a «agiotagem» cabralista; eles eram igualmente indispensáveis à criação de infra-estruturas materiais necessárias à formação do mercado nacional.

Sereni, citado por Villaverde Cabral, afirma que «o ‘custo’ da formação do mercado nacional imprime ao novo Estado, desde o seu nascimento, um carácter ‘fiscal’ (…) fazendo-o aparecer perante as massas, antes de mais, como uma feroz ave rapina». Foi realmente durante o período da ditadura cabralina que se lançaram as primeiras obras públicas, nomeadamente a construção de estradas.

Assim se explica que em 1843 se haja publicado a Lei das Estradas que, além de outras disposições impopulares, determinava um imposto pessoal de quatro dias de trabalho ou 400 réis de taxa anual, que cada indivíduo do sexo masculino era obrigado a pagar durante 10 anos.

Mas a penetração capitalista nos campos não se realizava apenas através do imposto: ela consubstanciava-se igualmente na omnipresença do Estado que vem abalar os equilíbrios existentes, cercear liberdades e sufocar a autonomia municipalista.

 São variadíssimos os casos em que se nota este processo de centralização: assim, no âmbito da Lei das Estradas, a que já nos referimos, o governo resolveu ordenar que o imposto fosse recebido pela Companhia das Obras Públicas, quando no projecto inicial ele era arrecadado por comissões de eleição popular. No que diz respeito à Lei da Saúde, uma das chamadas «leis novas» que estiveram na origem directa dos levantamentos, tirava-se às Câmaras e confiava-se ao Governo a nomeação dos médicos «de partido» [7].

Foi contra esta intromissão dos órgãos centrais do poder, do baronato de Lisboa e Porto, na vida administrativa dos municípios, com toda a carga adicional de selos, multas e taxas como aquelas que tinham de ser pagas para conseguir «bilhetes de enterramento», e que segundo o jornal A Revolução de Setembro, «varriam para o fisco a travesseira e tijela do defunto» [8], que se levantaram os povos da província em defesa da sua autonomia. «Terreiro do Paço contra a Província; concentração monopolista do capital através da utilização do aparelho do Estado contra a autonomia municipal e democracia popular», utilizando as palavras de Palminha Silva [9].

Entretanto o choque provocado no campo pela introdução das formas capitalistas de produção fez-se sentir a um outro nível: o da posse e utilização da terra. A expropriação dos bens de mão-morta só beneficiou as camadas financeiramente mais poderosas da burguesia em número quase igual ao dos conventos suprimidos. Os pequenos agricultores viram assim goradas as suas esperanças de melhoria das suas condições de vida através da posse e exploração de unidades agrícolas mais bem dimensionadas que as suas pequenas courelas que apenas lhes permitiam sobreviver. Por outro lado, a vedação dos campos, de acordo com os contratos enfitêuticos, conduziu à supressão dos direitos comunitários que perduraram durante séculos de feudalismo. Segundo Alberto Sampaio a vedação do Minho «(…) não se fez facilmente: em muitos sítios houve levantamentos da população pobre e sobretudo dos pequenos lavradores a quem faria falta o logradouro comum» [10]. A coincidência cronológica entre o movimento da vedação dos campos e a revolução da Maria da Fonte, como a própria expressão utilizada «motins» levam Miriam Pereira a crer que é a esta revolta que o autor se refere [11].

Se é certo que a revolução assume um carácter profundamente «anticapitalista», não é menos verdade que ela está impregnada por um forte conteúdo antifeudal, na medida em que é um protesto espontâneo, mas vivo e radical, contra o restabelecimento progressivo dos antigos direitos dos donatários de forais, agravado conjunturalmente pela alta de preços, que testemunha insuficiência das colheitas e pela baixa de salários, que vai acentuar-se no ano de 47.

Albert Silbert, ao referir-se à oposição dos senhorios à leia dos forais de 1834, da autoria de Mouzinho da Silveira, e à história da sua controversa e limitada aplicação, cita um relatório enviado ao governo em 1845 por um alto funcionário do distrito do Porto, traçando o panorama do que se passara desde 34, onde se lê que: «o direito dos senhorios particulares se restabeleceu facilmente» [12].

 É a partir desta verificação que aventa a hipótese de que a revolta popular do Minho se explique, pelo menos em parte, pelo descontentamento causado pelo modo decepcionante, para os rendeiros e foreiros, como se vinha aplicando a famosa lei de Mouzinho. Traz em abono da sua hipótese o que escrevia Silva Ferrão: «Tem-se dito, dentro e fora do Parlamento, muita coisa sobre as causas da Revolução do Minho em Maio de 1846 e porque não há de dizer-se que uma delas foram estes vexames, estas perseguições feitas aos forasteiros?» [13].

É também esta posição de Victor de Sá quando, ao referir-se às causas socioeconómicas da revolta, escreve: « a famosa lei dos forais permitia que os pequenos proprietários e os rendeiros continuassem a ser submetidos ao pagamento de múltiplas contribuições a senhores e donatários, mesmo se estes não eram os mesmo de outrora.» [14].

Coincidente é o ângulo de visão de Villaverde Cabral, que se apoiou em Silva Ferrão para afirmar, por seu lado: « o progressivo restabelecimento dos senhores da terra nos seus antigos direitos, e, sobretudo o modo brutal como isso se ia fazendo, com o seu cortejo de miséria para o pequeno foreito, podem ter estado na origem da revolta do Minho, fornecendo-lhe o fundo mais que o pretexto.» [15]. Partilhamos por inteiro esta confluência de opiniões. O problema dos forais foi, aliás, como veremos mais adiante, um dos problemas que o nosso governo de Palmela tentou atacar, embora o não tivesse feito de acordo com os interesses de rendeiros e foreiros.

O movimento revolucionário surgiu, pois, do entrosamento destas duas linhas: luta contra a penetração do capitalismo nos campos, da qual o aparelho de Estado era instrumento privilegiado; contestação da persistência das obrigações feudais. Não admira, por isso, que desde o início da revolta os camponeses enfurecidos, ao arrombar as administrações públicas, lançassem fogo aos arquivos não só para destruir as folhas dos impostos, «as papeletas da ladroeira», mas também os registos enfiteuses e dos encargos foreiros, segundo refere Victor de Sá, citando o padre Casimiro [16].

Deve, porém, deixar-se claro que, se a análise da conjuntura socioeconómica do ano 46 nos permite descobrir tais linhas- força na insurreição popular, não quer isto dizer que os seus protagonistas, nem mesmo os seus dirigentes, delas tivessem consciência e que, portanto, fossem orientados por directrizes ideológicas, derivadas de qualquer análise teórica.

Por este motivo a Revolução da Maria da Fonte aproxima-se das revoltas populares do antigo regime e distancia-se das movimentações europeias de 1848, de cariz socialista, como muito bem nota Miriam Pereira [17].

O povo do Minho não gritava somente contra as «leis novas», leia-se: os impostos, as limitações da autonomia regional, a proibição dos enterros nas igrejas (motivo acidental da revolta a que alguns conferem demasiada importância); ele lançava igualmente gritos de morte contra o governo ditatorial dos Cabrais, responsável por essas leis.

O país vivia desde 1842 sob um regime de ditadura que Villaverde Cabral denomina de «administrativa» pois se baseava mais no controlo das eleições e das diferentes instâncias do Poder do que na força armada propriamente dita ou no partido único.

 [18]. Ditadura ao serviço da aristocracia financeira, ela vai provocar a aliança táctica não só da pequena e média burguesia dos campos e das cidades, mas até da grande burguesia rural, com vista a canalizar as manifestações do descontentamento popular» (…) contra a famosa ferocidade de um Ministério, imposto na ponta das baionetas e que nenhum recurso, nenhuma torpeza esquecia para firmar a escravidão», no dizer do editorialista do primeiro número de O Grito Nacional [19]. Insurreição, aliás «legitima na opinião do mesmo jornal, porque provocada por uma longa resistência do Poder constituído às reformas imperiosas reclamadas pela voz pública.» [20]

(continua)

________

[1] Albert Silbert, Do Portugal de antigo regime ao Portugal Oitocentista, p.97.

[2] Palminha Silva, F8 A Revolução da Maria da Fonte, p. 31.

[3] Joaquim de Carvalho, Da Restauração da Carta Constitucional à Regeneração, citado por Miriam Pereira, Livre Câmbio e Desenvolvimento Económico, p. 334.

[4] Pinto Roby, Exposição analítica do pronunciamento do dia 17 de Maio em Braga e dos actos da Junta Provisória nos dias 17 e 18 do dito mês, in Villaverde Cabral, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, p. 134.

[5] Joaquim de Carvalho, ob. Cit., in Miriam Pereira, ob. Cit., p. 328.

[6] Victor de Sá, A Crise do Liberalismo, pp. 216, 215.

[7] «Os médicos e cirurgiões do partido são de nomeação régia e promovidos por concurso documental feito perante as Câmaras Municipais respectivas (…)». Art.º 19, 4º, II cap. Da Lei de 26.11.1845, in Collecção Official da Legislação Portuguesa dos anos de 1844-45, p. 788.

[8] A Revolução de Setembro, Abril de 1846.

[9] Palminha Silva, ob. Cit., p.41.

[10] Alberto Sampaio, Estudos Históricos e Económicos, vol. II, p. 200, in Miriam Pereira, Livre Câmbio e Desenvolvimento Económico p. 327.

[11] Miriam Pereira, ob. Cit., p.327

[12] Albert Silbert, ob. Cit., p. 96

[13] Silva Ferrão, in Albert Silbert, ob. Cit., p. 97

[14] Victor de Sá, ob. Cit., p.228.

[15] Villaverde Cabral, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, p. 143.

[16] Padre Casimiro, Apontamentos para a História da Revolução do Minho em 1846, in Victor de Sá, ob. Cit., p.200.

[17] Miriam Pereira, ob. Cit., p. 335.

[18] Villaverde Cabral, ob. Cit., p. 123, 124.

[19] Jornal O Grito Nacional, nº1 de 19 de Maio de 1846.

[20] Jornal O Grito Nacional, nº 3 de 22 de Maio de 1846.

Leave a Reply