REFLEXÕES EM TORNO DO MASSACRE DE PARIS, EM TORNO DO CINISMO DA POLÍTICA OCIDENTAL – SENADO FRANCÊS – COMISSÃO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, DEFESA E FORÇAS ARMADAS – AUDIÇÃO DO GENERAL VINCENT DESPORTES SOBRE O PROLONGAMENTO DA OPERAÇÃO CHAMMAL NO IRAQUE – II

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Selecção, tradução, notas e montagem por Júlio Marques Mota

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COMPTES RENDUS DE LA COMMISSION DES AFFAIRES ETRANGÈRES, DE LA DEFENSE ET DES FORCES ARMÉES

Debate em sessão pública sobre o prolongamento da operação Chammal no Iraque – Audição do general de divisão Vincent Desportes, professor associado em Sciences Po Paris

A comissão ouve o general de divisão Vincent Desportes, professor associado em Sciences Po Paris, no quadro de uma audição em sessão pública sobre o prolongamento da operação Chammal no Iraque, em conformidade com o artigo 35 da Constituição.

17 de Dezembro de 2014

280px-Vincent_Desportes_salon_du_livre_2012(continuação)

É bom aqui recordarmo-nos daquilo a que o Ministro Powell nomeava síndrome “de Pottery Barn ”, uma grande cadeia de lojas de louça aos Estados Unidos. Nós estávamos em 2002, e Colin Powell queria dissuadir George W. Bush de lançar a sua agressão ao Iraque. Dizia assim: “Quando se entra “em Pottery Barn ”, o que partir é seu ”. Tinha razão. O Iraque e o Médio Oriente “pertencem” aos Estados Unidos, como os conflitos regionais, em cascata, que esta agressão gerou, da mesma forma que o Estado Islâmico, também “pertence” aos Estados Unidos. Da mesma forma, a Líbia pertence à França, da mesma maneira que o caos regional que provocamos sobre toda a zona do Sahael-Saará. Pelo menos se considerarmos que há uma relação entre o sentido da civilização e o sentido da responsabilidade…

Devo sublinhar o vosso quarto ponto, o do peso orçamental das operações OPEX. Não se trata “de ter os meios das suas emoções”. Trata-se “de fazer os investimentos necessários para a segurança dos Franceses”, de acordo com a palavra do ministro Le Drian. Nada a ver uma coisa com a outra!

É de imediato bem evidente que oferecer-se um Porsche e ser seguidamente incapaz de pagar o combustível para o fazer circular tem a ver com o absurdo. Madeleine Albright tinha efectivamente razão quando punha a pergunta: “Para que servem as nossas muito boas forças armadas se não nos pudermos servir delas?”.

Sub-dimensionamento patente do orçamento OPEX tem efeitos perversos consideráveis de que devem estar conscientes os que decidem. Primeiro, deixar dizer pelos meios de comunicação social, sem desmentido formal, que os exércitos gastam indevidamente o magro orçamento francês tem a ver com uma falta de moral, e isto no mesmo momento em que os nossos soldados se batem sobre todas os frentes, pela França e às suas ordens, com recursos muito demasiadamente contados. Seguidamente, porque estamos sempre abaixo da “dimensão crítica”, este sub-dimensionamento do orçamento tem consequências directas tanto sobre o sucesso das operações como sobre a segurança dos nossos soldados: estes encontram-se postos em perigo.

Hoje logo que uma operação é decidida, os planificadores têm como ordem estrita limitar ao máximo os meios, não em função de exigências operacionais mas de acordo com uma estrita uma lógica orçamental. Seguidamente, logo que a operação é lançada, a única preocupação dos planificadores é a de repatriarem o mais depressa possível com o máximo dos meios utilizados. Com três consequências desastrosas:

Primeiramente, os nossos soldados reencontram-se sempre em grande perigo em relação a uma operação planificada normalmente, ou seja em função da sua finalidade e das suas exigências operacionais. As opções tácticas são raramente opções “operacionais”: são escolhas tácticas por defeito, sob forte constrangimento. A operação Sangaris é um exemplo dramático desta deriva: logo à partida, os meios eram muito insuficientes e não havia nenhuma adaptação dos volumes, mesmo quando a necessidade era gritante;

Em segundo lugar, as nossas forças têm uma grande dificuldade em levar a cabo totalmente as suas missões e agem em oposição flagrante com um dos principais princípios da guerra, o princípio de massa e de submersão. A acção, executada com meios contados, leva tempo a produzir os seus efeitos e custa finalmente muito mais caro. Assim, as nossas forças são levadas a efectuar operações sequenciais e não paralelas. É o exemplo – tipo de Sangaris: primeiro a Séléka, seguidamente anti Balaka: a força francesa aí perde a sua eficácia e o seu caracter de imparcialidade;

Em terceiro lugar, os nossos exércitos já foram transformados “em Kit expedicionário”, por conseguinte capazes de ganhar batalhas mas não de ganhar as guerras – ou seja, incapazes de produzir “um estado de paz melhor que o precedente” de acordo com as palavras de Liddell Hart. Hoje, acelera-se a sua retirada, desperdiçando os seus sucessos iniciais que já não se podem transformar em sucesso estratégico e político. Depois de ter repelido, destruído ou conquistado, nunca temos forças suficientes para “apanhar na rede” e “aguentar”.

Assim, do Afeganistão a RCA passando pelo Mali, o problema essencial é o “da permanência” e o síndrome que lhe corresponde, o “Sisifo guerreiro”, reconquistando todas as manhãs o que teve que abandonar à noite.

Chego agora a Chammal. Depois de alguns rodeios, concordo, mas nunca se perde o seu tempo a fazer um recuo no tempo, um recuo estratégico, numa época em que, precisamente, a tendência é a de raciocinar em termos do tempo que corre, em termos de despesas correntes, sobre os problemas que dependem do tempo longo e de pesados investimentos.

Não me demoro sobre a espantosa contradição actual que confunde entre, por um lado, às nossas portas o colocar do mundo em brasas, ao nosso Leste, ao nosso Sudeste, ao nosso Sul, a multiplicação das nossas intervenções e, por outro lado, a deterioração profunda e rápida das nossas capacidades orçamentais com, a jusante, a deterioração das nossas capacidades militares. Todos o sabem, à direita e esquerda. Alguns, muito poucos numerosos, dizem-no mesmo.

Há sempre mais operações e há sempre menos meios. E corremos sem esperança atrás de pelo menos um sucesso concreto. Despimos Pierre para vestir Paul, seguidamente despimos Paul para tornar a vestir Pierre e vestir Jacques.

Demasiado cedo, reduzimos as nossas forças no Mali porque era necessário ir para a RCA; aí, o nosso fraco contingente produz resultados bem imperfeitos mas para já nós despimo-lo porque é necessário efectivamente fazer Barkhane… mas que é necessário também ir rapidamente reconquistar no Mali o Adrar do Ifoghas que nós largámos demasiado rapidamente. O ajudante do comandante encontrou aí a morte.

Então? Tenhamos em conta o conhecido princípio da guerra: o princípio de concentração… ou na sua versão popular: “quem demasiado abraça mal abraça”. Paremos de nos dispersar! Olhemos as coisas de frente.

Estado islâmico. “Daech delenda est”: certamente! Nós estamos profundamente solidários, mas não somos de modo nenhum responsáveis. Os nossos interesses existem, mas são indirectos. As nossas capacidades são limitadas e irrisórias, lá fora, em relação às dos Estados Unidos e a nossa influência estratégica é extremamente limitada. Embora sejamos o 3º país em termos de participação aérea, somos considerados pelos Americanos como o 9º contribuinte, atrás da Arábia Saudita. No seio do Estado-maior inter-aliados e inter-exércitos operativo no Kuwait, o nosso peso e o nosso acesso é muito limitado, com apenas uma cinquentena de postos de não ABCA sobre um milhar. O problema é de uma muito grande complexidade e só será resolvido com o tempo muito longo, exigindo sempre mais meios.

Barkhane. Somos profundamente responsáveis. Responsáveis simultaneamente pelo caos que criámos e, quer se queira quer não, e pela estabilidade da região do Sahel e do Saará e da franja noroeste da África negra. Além disso, há interesses directos de toda a natureza. O problema é militarmente muito mais simples, com soluções políticas mais claras. A saída será mais fácil. Ninguém ou quase ninguém nos virá ajudar, porque a solidariedade internacional, porque a solidariedade europeia, são coisas que não existem. Na falta de ajuda internacional, dispomos de uma grande autonomia estratégica. Nós, nós estamos lá desde há muito tempo e será bem necessário sair, um dia, além disso, para nos ocuparmos do caos líbio e da ameaça Boko Haram que vai continuar a pôr-se de forma crescente. Não teremos escolha.

Então? Então, concentremo-nos. Deixemos alguns oficiais planificar as operações nos centros de operações; deixemos as nossas três cores flutuar sobre o Estado-maior da coligação anti Daech.

É necessário continuar a pagar o preço mínimo para o bilhete de acesso à informação, mais é também necessário olhar pelo controlo da sua inflação já a verificar-se. Mas concentremos todos os nossos esforços e os nossos magros meios sobre esta operação Barkhane, gigantesco desafio estratégico e logístico, conduzido hoje com um efectivo irrisório para uma missão de segurança ultra – complexa que cobre uma zona imensa de cinco países de fronteiras porosas, com um dispositivo francês já no limite das suas capacidades.

E não temos escolha: teremos de vencer, necessariamente sobre o tempo longo. Pelo mundo. Mas sobretudo pela França e pela segurança dos nossos concidadãos.

(continua)

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Para ler a Parte I deste depoimento do general Vincent Desportes no Senado Francês, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

REFLEXÕES EM TORNO DO MASSACRE DE PARIS, EM TORNO DO CINISMO DA POLÍTICA OCIDENTAL – SENADO FRANCÊS – COMISSÃO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, DEFESA E FORÇAS ARMADAS – AUDIÇÃO DO GENERAL VINCENT DESPORTES SOBRE O PROLONGAMENTO DA OPERAÇÃO CHAMMAL NO IRAQUE – I

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