PROBLEMAS DE ONTEM E DE HOJE QUE JÁ NÃO DISCUTO COM O MEU AMIGO ANTÓNIO GAMA – por JÚLIO MARQUES MOTA – IV

júlio marques mota

António Gama (1948 - 2014)
António Gama (1948 – 2014)

Problemas de ontem e de hoje que já não discuto com o meu amigo António Gama

(continuação)

  1. Portugal e a Europa na encruzilhada da sua arquitectura, da sua crise e da globalização

Um esquema muito simples da economia permite-nos perceber e sintetizar esta mesma dinâmica, a do capitalismo actual a caminho de uma agressiva globalização, utilizando para o efeito a metodologia de Robert Mundell.

No quadro do capitalismo nunca se pode ter em conjunto a política monetária autónoma, taxas de câmbio fixas e liberdade de movimentos de capitais. Apenas se podem reunir duas características duas a duas, como por exemplo movimentos de capitais e taxas de câmbio fixas, perdendo-se a autonomia de política monetária, como por exemplo política monetária autónoma e taxas de câmbio fixas, mas neste caso perdendo-se a mobilidade dos capitais, ou ainda como terceira hipótese podemos ter política monetária autónoma e movimentos de capitais, perdendo-se a hipótese de câmbios fixos. Tudo isto pode ser condensado no chamado triângulo das incompatibilidades ou triângulo de Mundell:

antónio gama - II

 

A política neoliberal, em síntese pode ser expressa pela seguinte regra de ouro do capitalismo actual: o que interessa aos capitais, é o que interessa ao governo, o que interessa ao governo é o que deve ser imposto como regra na democracia. Simples, o que interessa aos capitais é o que a Democracia deve satisfazer. Assim, portanto, a regra que rege o neoliberalismo e que tem sido esta a que tem prevalecido em Portugal nestes últimos anos.

Graficamente e tomando como referência a lógica de Mundell acima referida poderemos agora exemplificar o quadro teórico em que se situava o governo neoliberal que acabou de cair em Portugal através de um esquema em que é fácil representar a sua visão da realidade e a mistificação a que essa visão o levava, que de resto é genérica, hoje, a todos os países da zona euro[1]. Imaginemos um triângulo equilátero em que em cada vértice é caracterizado por uma característica do sistema:

antónio gama - I

Vejamos o que foi a lógica do executivo que caiu agora em Portugal. Seguindo o seu quadro ideológico, neste triângulo tracemos por cada vértice uma bissectriz, O conjunto das três bissectrizes intercepta-se num ponto a que chamamos PEm, ponto de equilíbrio máximo, ponto equidistante de todos os vértices, como um ponto em que as três características são salvaguardadas, respeitadas. Esta foi a imagem que o governo, de Passos Coelho, quis dar, ou seja, a de que a sua política era a de garantir que o país caminhe nesse sentido, para esse ponto mágico, ponto inexistente por       que representa a conciliação do inconciliável, argumentando que para isso basta satisfazer a lógica de mercado de capitais. Neste quadro fortemente ideológico, a função do governo é assegurar que este enquadramento conceptual é satisfeito em toda a plenitude, o que se expressa então pela liberdade de capitais articulada com “a sua imagem”, a desregulação dos mercados de trabalho. Neste quadro de raciocínio, ou de mistificação de raciocínio, a verificação conjunta das características expressas pelos vértices B e C assegura a verificação do vértice A e teríamos então o ponto PEm. Os Deuses estão loucos, ou neste caso os nossos neoliberais e os economistas ao seu serviço quando partem desta hipótese, pois no quadro do capitalismo temos exactamente o inverso, a lembrar precisamente o paralelo com o triângulo de Mundell, pois só se podem verificar as caraterísticas conjuntas de dois vértices. Vejamos: se temos o governo duramente a actuar de modo a garantir a desregulação dos mercados, se possível, total, teremos os capitais a maximizarem as suas taxas de remuneração, e temos, por definição a situação a afastar-se da profunda Democracia, distanciando-se o mais possível desse vértice A, ou seja, caindo sobre a linha que une os vértices B e C e a Democracia é assim capturada pela desregulação criada pelo Estado para se assegurar o domínio do capital. Caricatamente, a União Europeia como espaço regional, substitui-se aos espaços nacionais nesse esquema, levando estes com a perda da soberania nacional a tornarem-se pura e simplesmente em meros instrumentos das políticas das suas Instituições, e assim, em vez de se posicionar num projecto de ligação entre os vértices A e C, a corresponder assim à visão que os seus fundadores, Schumann e Monet, pensavam para a Europa, a União Europeia tem-se mostrado e com que fúria como um processo acelerador de posicionamento de todos os países sobe a linha BC. A caminho da globalização selvagem, portanto! A Tróica aí está mostrá-lo a nível já europeu e o anterior executivo português a comprová-lo no quadro de Portugal.

Deixemos por instantes a linha BC e vejamos a linha caracterizada pela união dos vértices A e C. Neste caso o Estado ou a União Europeia em seu lugar estaria a fazer o enquadramento da social-democracia, respondendo o Estado aos desejos das populações e subordinando a estes interesses sociais os interesses dos grandes capitais que ficariam assim como a variável residual do sistema, ou ainda a variável de ajustamento. Este terá sido o regime saído de Bretton Woods e que durou, diremos, até meados dos anos 70. Imaginemos a linha que une os vértices B e A. A satisfação de interesses contraditórios no quadro das economias globais exigia um Pacto, um Acordo Global, uma compatibilização de interesses que nenhum governo nacional seria capaz de impor e muito menos seria capaz de forma autónoma conseguir, face às contradições de interesses nacionais que se levantariam. Só uma governação à escala mundial o poderia fazer, sobrepondo-se assim aos Estados nacionais mas esta governança não existe nem existirá a não ser nos limites dos confins da História, portanto, hipótese a abandonar.

O que é ainda mais grave aqui é que os governos neoliberais puros e duros como o do anterior executivo em Portugal situam-se na linha que une os vértices B e C, ou seja, na trajectória da globalização. Nesse direcção e em boa lógica assiste-se a um desmantelamento do Estado Providência mas a manutenção da Democracia formal exige o recurso aos argumentos do vértice A, não para os cumprir mas para os fingir assumir. Daí o aparecimento necessário dos Leopardos dos que se mostram capazes de mudar tudo e mais alguma coisa, para conseguirem, depois, que fique tudo na mesma. A história da sociedade portuguesa desde o aparecimento da crise é também a história dessa mistificação.

O leitor poderá ser levado a pensar eventualmente nalgum exagero da nossa parte, mas se assim for, creio que haverá da sua parte engano. A ganância em levar a desregulamentação ao máximo dos seus limites, para cuja análise aconselho o leitor a ler o trabalho de Paul Craig Roberts e Schuman anteriormente citado, é tal que leva a União Europeia e os seus novos comissários a recusarem entender quais foram as razões de fundo que levaram à União Europeia a esta crise tão profunda, pois insistem no aprofundamento dos mesmos mecanismos que a geraram. Com efeito, um dos grandes projectos da Comissão Juncker é a União dos Mercados de Capitais sob a égide do actual comissário Jonathan Hill, um lobista da City e agora responsável pelos mercados financeiros. Sobre este tema vejam-se duas fontes seguras:

Informa o jornal “Les Echos”, a Maio de 2015[2]:

“A criação de uma União dos Mercados de Capitais (UMC) é um dos projetos-chave da Comissão Europeia que deve estar realizado até 2019. No quadro deste projeto, UMC, num relatório enviado ao ministro francês das Finanças, Michel Sapin, o especialista em mercados financeiros Fabrice Demarigny escreve:

“O UMC deve permitir reforçar ou criar, à escala europeia, mecanismos que permitam investir com confiança a poupança onde a inovação se concebe, onde as empresas cresçam e onde novos empregos se criam”, em que se deseja que “este projecto seja assente numa ambição, que é a que daqui a dez anos, 40% das necessidades de financiamento das empresas, sejam financiados pelos mercados, contra 20% de hoje.”

Informa a Reuters, a 30 de Setembro de 2015[3]:

“A Comissão europeia apresentou quarta-feira um plano de acção para os mercados de capitais que deverá conduzir à uma flexibilidade das regras em matéria de fundos próprios impostas aos bancos e às companhias de seguro, para facilitar o financiamento das empresas e apoiar o crescimento.

O Comissário europeu para a estabilidade financeira, Jonathan Hill, apresentou ele mesmo estas medidas, na perspectiva da criação da UMC prevista para ser concluída até 2019.

“Quero suprimir os obstáculos à livre circulação dos capitais nos 28 Estados-Membros”, disse Jonathan Hill.”

Entre as medidas cuja entrada em vigor é prevista a curto prazo figuram novas regras em matéria de titularização e uma modificação das regras de solvabilidade das seguradoras incitando-as a investir em projectos de infra-estruturas reduzindo o montante dos capitais a deter para cobrir estes investimentos.

 O relançamento do mercado da titularização é uma prioridade declarada para as autoridades europeias, a Comissão explica que levar a titularização ao seu nível de antes da crise permitiria mobilizar 100 a 150 mil milhões de euros de financiamentos suplementares para a economia.

A titularização que consiste no agrupamento de empréstimos sob a forma de um instrumento financeiro de que os investidores podem adquirir partes, contribuiu para o desencadeamento da crise financeira aos Estados Unidos em 2007.”

 A este respeito vale a pena inserir aqui um apelo lançado por um conjunto de organizações não-governamentais:

Quem ganhará com a União dos mercados de capital?

Um apelo de múltiplos signatários

Um grupo de organizações da sociedade civil europeia, entre as quais o Instituto Veblen, exprimem as suas apreensões na sequência do lançamento do plano de acção para a União dos mercados de capital (UMC) proposta pela Comissão Europeia.

A União dos mercados de capital (UMC) visa sobretudo desenvolver o financiamento pelos mercados (igualmente chamado sistema bancário paralelo ou de créditos não bancários) na Europa. O Plano de Acção da Comissão e as propostas que lhe estão associadas já foram publicados na quarta-feira 30 de Setembro de 2015. Até agora – e apesar da sua evidente dimensão de interesse público – o debate em redor do conteúdo da UMC deu-se entre iniciados, fora da arena pública.

É pouco provável que a UMC cria duravelmente em emprego e gere crescimento. Focaliza-se sobre o aumento da oferta de crédito mas não enfrenta as causas profundas da ausência da procura global. Parece pouco verosímil por exemplo que o retorno à titularização possa ajudar as PME dado que é demasiado complexo e dispendioso trabalhar sem subvenções. Além disso, na ausência de escassez de financiamento em média, os bancos podem doravante emprestar mais. Não há então nenhuma necessidade evidente de promover um financiamento pelos mercados em detrimento do sistema bancário tradicional.

Embora algumas das iniciativas da UMC sejam bem-vindas, muitas outras poderiam gerar riscos adicionais para a economia e para a sociedade em geral, na Europa e não só.

As organizações signatárias desta declaração, compreendendo sindicatos, ONG e think-tanks de desenvolvimento e defesa do ambiente, têm diferentes níveis de preocupações a respeito da UMC. Preocupam-se nomeadamente com os riscos para a estabilidade financeira, para os pequenos investidores, para os reformados e os consumidores, para os trabalhadores, bem como sobre os problemas ambientais, sociais e de governança (ESG). Apelamos, por conseguinte à criação de condições de debate sobre a UMC para que as propostas da sociedade civil em prol de uma bem maior transparência, uma protecção dos investidores e um reforço geral da regulação existente sejam tomadas em consideração. Além do mais, enquanto o debate sobre a UMC se concentra exclusivamente sobre a questão do financiamento da economia, é igualmente importante abrir um debate sobre o que financiamos (por exemplo, condições de vida e de trabalho decentes, investimentos que permitem aumentar os desafios da mudança climática, etc.). É necessário igualmente encontrar uma resposta a esta questão: quem ganhará com a UMC? Inegavelmente, os bancos da UE “demasiado grandes para fazer falência” tirarão bem mais benefícios que os 90% das PME para as quais o financiamento pelo mercado é muito largamente inadaptado. Em resumo, a UMC reaviva as tendências de antes de crise sem estar a integrar eficazmente as lições tiradas da referida crise. É também o indicador de um momento decisivo na dinâmica política centrada sobre o crescimento a curto prazo e na competitividade custe o que custar, enquanto temos antes de tudo necessidade de um desenvolvimento da economia duradoura e de longo termo.  

O Plano de Acção UMC é acompanhado de propostas legislativas que serão discutidas pelo Parlamento Europeu e pelos Estados-Membros. O Parlamento reflectirá também no Plano de Acção na sua totalidade e terá um debate com o Comissário Jonathan Hill. As organizações da sociedade civil apelam às instâncias de decisão política a tomar em consideração e integrar as suas apreensões bem como as suas propostas. Como a crise financeira o demonstrou, a estabilidade financeira é um pré-requisito indispensável à criação duradoura de emprego e o crescimento.

Ainda na mesma linha escreve Luigi Pandolfi intitulado União dos Mercados de Capital: A União Europeia trabalha para um novo krach:

Financiamento criativo: a Comissão Europeia acaba de anunciar o lançamento da União dos mercados de capital, o plano de acção contra a especulação para criar um “verdadeiro” mercado único dos capitais. Mas este plano é baseado em novas dinâmicas especulativas, como a reactivação da “titularização”, a aquisição de sociedades, a implicação dos seguros e sobre a poupança dos fundos de pensões.

(…)

Face aos problemas económicos e sociais graves que afligem a Europa, a Comissão europeia não tem por conseguinte mais nada a propor que não seja um aumento das actividades financeiras, de novo com o recurso às promessas fabulosas da economia de papel. Não têm nenhumas dúvidas: “se pudermos levar os volumes de titularização na UE aos níveis médios que se atingiam antes da crise, isto permitiria gerar entre 100 e 150 mil milhões de euros de financiamentos suplementares para a economia”; Como se na base da Grande recessão na qual, de certos pontos de vista, estamos ainda afundados, não tivesse havido precisamente um crescimento híper-atrofiado da finança especulativa e do sistema bancário paralelo (Shadow banking system), nas actividades em que a titularização assumia um peso essencial.

(…)

Como se tudo isto ainda fosse suficiente, a Comissão declarou-se igualmente determinada “a suprimir os obstáculos prudenciais injustificados” que “impedem as seguradoras de desempenhar um papel importante nos projectos de infra-estruturas europeias”. Uma maneira, aqui também, de estender o raio de acção da especulação financeira, aqui subordinando também as necessidades reais e as necessidades das comunidades locais. E o plano não se fica por aqui. O círculo fechou-se com os fundos de pensão, os instrumentos de recolha da poupança, canalizados para o circuito da finança especulativa. A Comissão assegura que o seu objectivo é o “de oferecer às famílias melhores soluções para prepararem a sua reforma”. De facto, trata-se da intenção de aumentar os regimes privados em detrimento dos regimes públicos, o que o plano apelida de “o terceiro pilar” da União dos mercados de capital. Será que isto tem muito pouco a ver com as políticas de austeridade destes últimos anos? Considerado bem, diríamos claramente que sim.

Em termos gerais, o plano não faz mais do que confirmar a deriva desta Europa, de berço do Estado providência a laboratório do radicalismo neoliberal. Com tudo isto, os seus “dirigentes” não fazem nenhum mistério. Mesmo nesta ocasião concreta: “a União dos mercados de capital”, lê –se no seu plano, “deveria permitir uma maior concorrência e a criação de mercados mais líquida” a fim de aumentar “a competitividade europeia”. “Mercados mais líquidos”, por conseguinte. Isto significa ainda mais desregulamentados, livres “de laços e entrelaços”, exactamente no momento em que as vicissitudes da economia europeia e mundial teriam de fazer reflectir sobre a necessidade da sua mais severa limitação.

Depois de ter respondido à crise que estoirou entre 2007 e 2008 com o endurecimento das políticas de austeridade, a Europa assenta hoje, para sair da linha de água, sobre os mesmos actores que provocaram esta crise. Com efeito, a Comissão não faz nada mais do que estar apenas a multiplicar os riscos de uma nova grande crise financeira.

Luigi Pandolfi, Capital Markets Union : L’UE travaille à un nouveau krach financier. Texto disponível:

http://www.alterinfo.net/Capital-Markets-Union-L-UE-travaille-a-un-nouveau-krach-financier_a117951.html

E a concluir este ponto em que se mostra o caminho perigosíssimo que a União Europeia nos está querer impor em nome dos mercados financeiros, o caminho para uma nova crise e exactamente com os mesmos mecanismos com a diferença de que agora muito mais potentes, vejamos a relação da submissão aos mercados financeiros com o pão nosso de cada dia, o que em 2007 e 2008 gerou um grande escândalo e que agora se quer escamotear: os produtos derivados e as bolsas de mercadorias.

Dizem-nos as ONG’s WEED e SOMO:

“Breve actualização: Os reguladores da UE enfraquecem a lei da UE que limita a especulação sobre os bens alimentares (MiFID II MiFIR). A aplicação da nova lei MiFID II/MiFIR que impõe limites nos contratos dos derivados que especulam sobre os bens alimentares ou sobre outras mercadorias, incluindo a energia, está a ser enfraquecida de diversas maneiras pelos reguladores europeus, que publicaram propostas para estabelecer as normas técnicas para aplicar as leis a 28 de Setembro de 2015.

Em primeiro lugar, a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) propôs que os contratos especulativos detidos por uma pessoa/empresa pudessem atingir até 35% dos derivados comercializados sobre uma bolsa de mercadorias. Geralmente, as autoridades nacionais devem ter a escolha para impor posições limites por pessoa ou por empresa e por bolsa de mercadorias entre 5% a 35%, mesmo que 5% nas mãos de um especulador possa já ter um efeito significativo nalgumas bolsas. Em segundo lugar, ESMA não propôs como é que a volatilidade do mercado e dos nas bolsas de mercadorias financeiras deveria ser tomada em consideração ao decidirem os limites do posição de funcionamento, mesmo que isto faça parte do texto legal e uma razão principal pela qual as posições limites passaram a ser exigidas como resposta ao facto das variações dos preços dos bens alimentares terem gerado motins por causa da fome e dos elevados preços dos bens alimentares. Em terceiro lugar, há uma norma de regulação fraca sobre como avaliar se uma empresa ou uma pessoa não-financeira que estejam muito activas no comércio especulativo dos derivados de mercadorias deve ser sujeita a um regulação mais cerrada e mesmo ser exigido ter reservas de capital (isto é uma definição fraca “da actividade subordinada” para os grandes operadores nas bolsas de mercadorias financeiras). Em quarto lugar, ESMA está a pedir um atraso de um ano na entrada em vigor de MiFID IIMiFIR, argumentando com o facto de que todos os instrumentos exigidos de colheita e de report dos dados não podem ser postos em prática antes de 1º de Janeiro de 2017. A posição de ESMA foi muito influenciada pelo sector financeiro e da indústria da energia que têm fortemente feito lobing , como pode ser visto sobre os documentos de posição e nos meios de comunicação social. O Parlamento Europeu protestou contra estes desenvolvimentos e está a negociar com a Comissão Europeia para melhorar e/ou encontrar acordos nas propostas de ESMA.”

Tudo isto confirma o que se disse com o triângulo acima, mas mais grave ainda, faz lembrar os mecanismos de pressão a serem agora exercidos para aprofundar e aumentar a capacidade de intervenção dos mercados financeiros, ou seja, a pressão exercida sobre as autoridades para uma maior desregulação dos mercados, tal como aconteceu nos Estados Unidos e que levou aos resultados que aí se verificaram[4] a partir de 2008, quando o que se deveria exigir era um maior controlo sobre estes mesmos mercados. Neste quadro analítico passámos a ser um país sem futuro, integrados numa Europa também ela já sem horizontes, sem perspectivas, disposta a mergulhar nos mesmos erros que a colocaram no actual atoleiro e a ficar completamente impotente face aos grandes problemas que tem de enfrentar, cansada e exausta, é o que penso. Aqui, e uma vez mais, lembro-me das conversas com António Gama a propósito do Leste Europeu, recordo-me igualmente de Christophe Beaudouin[5] quando este autor afirma:

“Com efeito, a passagem da Europa das nações à Europa da integração, do Mercado comum à globalização mercantil é a assinatura de uma grande renúncia. Uma renúncia à Europa como vontade e como civilização. Uma renúncia à democracia compreendida como a soberania colectiva e mais geralmente como “o governo dos Homens”. Esta renúncia egoísta das novas elites – aquelas que controlam os fluxos de dinheiro e de informação mundiais – conhece grandes precedentes históricos: no século IV, a decadência do espírito público que atingiu a classe dirigente romana provocou a desordem que está na origem da implosão de Roma assim oferecida aos invasores; do mesmo modo, o desmoronamento moral das elites francesas preparou o desmoronamento militar e “a estranha derrota” de Maio-Junho de 1940 de acordo com a famosa fórmula de Marc Bloch.

Em vez de pensar sobre uma arquitectura europeia flexível que conjugue respeito das democracias, da necessidade de fronteiras e economia de mercado, os Estados da Europa colaram-se uns aos outros sob a égide da administração de Bruxelas, como galinhas doentes a um canto do galinheiro. Já não era nem a paz nem a fraternidade europeia que os movia desta vez, mas a angústia de um mundo que estava em grande mudança. A integração supranacional é a última viagem das democracias cansadas, exaustas e quase que aliviadas por sentirem estar a chegar o seu fim, sem nenhum problema de consciência, face às responsabilidades decididamente exigentes da soberania.

Também eu me sinto cansado, exausto, corroído por esta realidade terrível de que estamos a sofrer. Deambulo agora no interior de uma grande cidade, a minha memória, o espaço no fundo por onde se alimenta toda a minha maneira de ser, e neste espaço relembro o meu antigo aluno de mestrado enfiado no fundo de um rio a trabalhar na construção de uma barragem, porque emprego condigno para a sua qualificação simplesmente não existe por ali: a crise e a incapacidade dos dirigentes nacionais e europeus destruiu-os. Relembro também gente que licenciei pelos anos 80-90, gente na casa dos 40-50 anos, gente que teve trajectórias relativamente brilhantes para o meio económico e social do nosso País, até que…veio a crise. Histórias, e não são poucas, a começarem agora como a do director comercial acima referido, gente que agora tem dois a três filhos, alguns deles com filhos já nas Universidades portuguesas, que tem uma razoável soma de custos fixos a pagar mensalmente, gente a ficar sem emprego, gente a saber que não o encontrará tão cedo a não ser que percorra a espiral do inferno que não dá para pagar sequer os colégios onde tinham ou têm ainda os seus filhos. Gente que aos cinquenta está como o meu antigo aluno de mestrado feito a sobreviver nas obras de uma barragem algures por este país de miséria mas com uma diferença, estes têm a pressão do olhar dos filhos, dos amigos, da família, em suma da sociedade que os rodeia, não têm a comodidade da minha “marechala” que tudo sofria porque ninguém a via naquilo que padecia. Gente que o governo Passos Coelho teria convidado ( ou continuaria a convidar se ainda fosse poder) a sair da sua almofada de conforto. E interrogo-me sobre o futuro de toda esta gente. Sair? Sair para onde? Saiam, saiam parece ser a ordem, é o que ainda penso ouvir, vindo de S. Bento, vindo do governo de direita que desmantelou este país, quando me sentia envolvido nestas minhas memórias. Quando saírem oferecemos cursos de alemão, gratuitamente, como disseram a um amigo meu, carpinteiro na construção civil com 55 anos de idade, é o eco que conservo de tudo isto. E, de novo, penso no demógrafo Edward Hugh e no seu artigo, O último que feche a luz[6].

Mas se tivermos em conta que o mesmo se passa em Espanha, se passou na Irlanda, se passou no Chipre, se passou na Itália, se passou na Grécia e assim sucessivamente percebemos que a Europa está cheia de gente perdida, migrantes sem destino, já sem raízes e percebemos ainda que tragicamente estão também sem futuro, como consequência das opções de política estabelecidas pelas Instituições Europeias e por Washington também. Veja-se a Ucrânia, saiba-se das camionetes de polacos que ajudaram a encher a praça Maidan em Kiev, um tema de que tanto falei com o António Gama, Ucrânia que é hoje uma espinha cravada na garganta da Europa…

E tanto assim que de Bruxelas ou Berlim ou de Frankfurt nada de bom se pode esperar que nos seja proposto, e se algo de bom nos for possível ter, só o teremos se a estas cidades for nós imposto. O governo a que me refiro, caiu, não teve tempo de fechar a luz. Tempo de esperança, portanto, o que começa agora com o governo António Costa. Veremos até onde o deixam ir.

Mas se dúvidas há sobre o que acabamos de afirmar basta-nos ver as ilações que se podem tirar sobre a política europeia para com a Grécia.

(continua)

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[1] Tomamos como referência neste ponto o trabalho de Dani Rodrik: The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy, W. W. Norton & Company, 2012.

[2] Veja-se Les Echos, http://www.lesechos.fr/journal20150519/lec2_finance_et_marches/02174697903-la-france-veut-etre-au-coeur-de-lunion-des-marches-de-capitaux-1120528.php

[3] Veja-se Reuters em: http://fr.reuters.com/article/frEuroRpt/idFRL5N1203DT20150930

[4] Sobre este assunto, veja-se Júlio Mota, Margarida Antunes, Luís Lopes, A Crise da Economia Global alguns elementos de análise, Editor, Livre, Lisboa 2009.

[5] Christophe Beaudouin, publicado por Nouvelles de France: «La France n’est peut-être pas encore bien consciente qu’elle peut mourir». Texto disponível em:

http://www.ndf.fr/poing-de-vue/11-12-2013/christophe-beaudouin-france-nest-etre-pas-encore-bien-consciente-quelle-mourir-13#.VmWz0biLRD8

[6] Edward Hugh, 2012. Portugal – Please Turn the Lights Off When You Leave! Texto disponível em:

http://www.economonitor.com/edwardhugh/2012/07/14/portugal-please-switch-the-lights-off-when-you-leave/#sthash.8adAWvq9.dpuf. Publicado em português com o título: Portugal – Por favor, quando sair desligue as luzes! E disponível em: http://aviagemdosargonautas.net/2012/08/01/analises-sobre-a-crise-olhares-sobre-a-europa-olhares-sobre-o-crime-que-contra-esta-os-seus-dirigentes-estao-a-cometer-3/

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Para ler a Parte III de Problemas de ontem e de hoje que já não discuto com o meu amigo António Gama, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

PROBLEMAS DE ONTEM E DE HOJE QUE JÁ NÃO DISCUTO COM O MEU AMIGO ANTÓNIO GAMA – por JÚLIO MARQUES MOTA – III

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Leia também Morreu o Professor António Gama – a homenagem de Júlio Marques Mota, em A Viagem dos Argonautas, acedendo ao link:

http://aviagemdosargonautas.net/2015/01/02/morreu-o-professor-antonio-gama-a-homenagem-de-julio-marques-mota/

 

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